Publicado em 1884, o romance Casa de Pensão, de Aluísio Azevedo, é uma das obras fundamentais do Naturalismo brasileiro. Situado entre as duas maiores produções do autor — O Mulato (1881) e O Cortiço (1890) —, este romance representa um elo importante no desenvolvimento da literatura que, à época, buscava abandonar os idealismos românticos para mergulhar nos aspectos mais viscerais, deterministas e sociais da realidade urbana.
Com uma linguagem direta, personagens moralmente ambíguos e uma crítica feroz à hipocrisia da classe média urbana carioca, Casa de Pensão investiga os efeitos do meio social, da hereditariedade e do instinto na formação do indivíduo. Azevedo se posiciona, assim, como cronista impiedoso de um Brasil em transformação — marcado pela modernização das cidades, pelo avanço da burguesia e pelo declínio dos valores patriarcais tradicionais.
Enredo em resumo
A história gira em torno de Amaro, um jovem pobre e provinciano que se muda do interior do Maranhão para o Rio de Janeiro com o intuito de estudar medicina. Ao chegar à capital, instala-se na Casa de Pensão da dona Joazeira, a famosa “pensão de Camila”, situada no Largo do Rocio.
Lá, Amaro se envolve com Amélia, filha da proprietária da pensão, uma moça que, apesar da aparência recatada, vive em meio a um ambiente de promiscuidade e manipulação. Os inquilinos da casa formam um microcosmo da sociedade urbana da época: funcionários públicos, estudantes, boêmios e aproveitadores, todos convivendo sob o mesmo teto, entre fofocas, chantagens, alianças e traições.
O drama se intensifica quando Amaro, após iniciar um relacionamento amoroso com Amélia, é acusado de atentado violento ao pudor contra ela. O processo judicial que se segue evidencia a falsidade das acusações, revelando uma armação arquitetada por interesses pessoais e vinganças mesquinhas. No entanto, o estrago à reputação de Amaro está feito — e o romance termina com um tom amargo de decepção e injustiça.
O Naturalismo em Casa de Pensão
A obra de Aluísio Azevedo é profundamente influenciada pelas ideias do Naturalismo europeu, sobretudo de Émile Zola, e aplica ao contexto brasileiro os princípios do determinismo, da hereditariedade e da influência do meio social sobre o indivíduo.
Determinismo social e moral
Em Casa de Pensão, os personagens não são livres para agir segundo uma vontade racional ou um ideal moral. Eles são moldados pelas circunstâncias sociais e pelas forças do ambiente. O protagonista Amaro, apesar de seu desejo de ascensão pessoal e profissional, acaba esmagado por forças maiores: a maledicência dos vizinhos, a hipocrisia da sociedade e a armadilha emocional e judicial montada contra ele.
Crítica à hipocrisia burguesa
O romance expõe, de forma quase clínica, a falsa moralidade da classe média urbana carioca. A pensão — espaço de convivência social forçada — revela-se um ninho de comportamentos mesquinhos, fofocas, ambições pequenas e convenções vazias. A própria figura da dona Joazeira, mãe de Amélia, representa essa duplicidade: apresenta-se como zeladora da moral, mas vive da exploração das moças e da manipulação dos inquilinos.
Sexualidade e instinto
Um traço marcante do Naturalismo é o tratamento da sexualidade como força instintiva e muitas vezes destrutiva. Em Casa de Pensão, a sensualidade velada de Amélia e a tensão entre os personagens masculinos mostram como o desejo, longe de ser idealizado como no Romantismo, é retratado como uma pulsão desregulada, geradora de conflito e degradação moral.
A construção dos personagens
Amaro
Amaro é o típico protagonista naturalista: um jovem aparentemente promissor, mas vulnerável às influências do meio. Vindo do interior com sonhos de progresso e ascensão social, ele é ingenuamente engolido pela lógica perversa da cidade grande. Sua trajetória é marcada por uma gradual desilusão, que reflete a perda de inocência e a impotência do indivíduo diante das estruturas sociais opressoras.
Amélia
Amélia é uma personagem ambígua. Ao mesmo tempo vítima e cúmplice da sociedade que a oprime, ela vive num ambiente em que sua sexualidade é monitorada, mas também explorada como instrumento de manipulação. Não é uma heroína romântica, mas sim uma figura naturalista, moldada pelas circunstâncias e pela moralidade hipócrita que a cerca.
Dona Joazeira e os inquilinos da pensão
A proprietária da pensão e seus moradores formam uma verdadeira galeria de tipos humanos, caricatos e realistas. São homens cínicos, mulheres interesseiras, estudantes preguiçosos e servidores corruptos. Todos vivem em um ambiente de constante vigilância mútua, onde cada um tenta tirar proveito do outro. Azevedo desenha esses personagens com traços marcados, não para julgar moralmente, mas para evidenciar os efeitos do meio na formação do comportamento humano.
O espaço da pensão como microcosmo social
Um dos méritos do romance é a criação da pensão como um espaço simbólico. Mais do que cenário, a casa de pensão funciona como metáfora da sociedade urbana brasileira do final do século XIX — desordenada, promíscua, competitiva e regida por aparências. Nela, o espaço íntimo se mistura com o público, o que intensifica os conflitos e expõe as contradições da vida coletiva. O autor usa esse ambiente fechado para estudar o comportamento humano sob “microscópio social”, como queria o Naturalismo.
Estilo e linguagem
A linguagem de Casa de Pensão é objetiva, descritiva e, por vezes, sarcástica. Azevedo abandona os floreios românticos e se aproxima de um estilo mais jornalístico, observador e impessoal, muito embora ainda encontre espaço para críticas ácidas e observações mordazes sobre o comportamento dos personagens.
Os diálogos são realistas, cheios de coloquialismos e ironias, o que contribui para a naturalidade da narrativa e aproxima o leitor do cotidiano urbano retratado. Há, ainda, um cuidado com a construção dos ambientes e das ações, como se o autor realmente estivesse documentando, com frieza científica, o comportamento humano.
Impacto e legado
Casa de Pensão foi uma obra de grande repercussão em sua época e ainda hoje é estudada como um marco da prosa naturalista brasileira. Ela contribuiu decisivamente para o amadurecimento do romance urbano no Brasil, ao retratar não apenas a vida dos grandes centros, mas também ao revelar as mazelas sociais com um olhar crítico e desapaixonado.
Aluísio Azevedo, com esse romance, consolidou-se como um autor comprometido com a exposição dos mecanismos sociais que oprimem o indivíduo. Sua literatura se aproxima da função quase científica que o Naturalismo europeu lhe atribuíra: observar, dissecar, expor — sem idealizar nem ocultar.
Conclusão
Casa de Pensão é um romance que continua relevante não apenas por seu valor literário, mas também por sua atualidade temática. As questões que levanta — hipocrisia social, desigualdade, justiça seletiva, exploração das relações humanas — ainda ressoam fortemente no Brasil contemporâneo.
Ao retratar o cotidiano com crueza, Aluísio Azevedo convida o leitor a abandonar ilusões românticas e encarar a realidade em sua complexidade. A pensão de dona Joazeira, com todos os seus personagens, permanece como um retrato fiel de uma sociedade que vive de aparências, alimenta preconceitos e destrói quem ousa não se adaptar.
Obra essencial para entender o Naturalismo brasileiro e sua contribuição para a formação do romance moderno no país, Casa de Pensão é leitura obrigatória para quem busca compreender o lado oculto da modernidade urbana e o jogo implacável das relações sociais.
Até mais!
Tête-à-Tête

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