Domenico Scarlatti (1685–1757) foi um dos compositores mais originais do barroco tardio e uma figura fundamental na história do teclado. Contemporâneo exato de Bach e Handel — nascido no mesmo ano que ambos —, ele trilhou um caminho totalmente singular, afastado dos grandes centros germânicos e italianos, e deixou uma obra marcada pela inventividade, pela audácia harmônica e pela fusão de elementos populares ibéricos com a técnica do cravo. Sua música, embora não tenha recebido a mesma atenção que a de seus contemporâneos durante séculos, hoje é reconhecida como uma das mais ousadas e encantadoras do período.
Vida e formação
Filho de Alessandro Scarlatti, um dos maiores compositores da escola napolitana, Domenico cresceu num ambiente musical privilegiado. Seu talento precoce levou-o a estudar com mestres renomados, incluindo Francesco Gasparini. Na juventude, serviu como organista e compositor em Nápoles, Roma e Veneza. Em Roma, conheceu figuras importantes como Corelli e se aproximou da elite artística, chegando a trabalhar para a rainha Maria Casimira da Polônia.
Apesar de seguir inicialmente a tradição musical de sua família — escrevendo óperas e música sacra —, Domenico começou a se destacar como virtuose do cravo, exibindo um estilo interpretativo ágil e expressivo que impressionava seus contemporâneos.
Mudança para a Península Ibérica
Um ponto decisivo em sua vida ocorre em 1719, quando ele se muda para Portugal para servir como mestre de música da princesa Maria Bárbara. A relação entre ambos seria duradoura: quando Maria Bárbara se casou e se tornou rainha da Espanha, Domenico acompanhou-a a Madri em 1729. A partir daí, viveria o resto da vida na Península Ibérica.
Essa mudança alterou profundamente o rumo de sua obra. Longe dos centros tradicionais da música europeia, Domenico desenvolveu um estilo próprio, profundamente influenciado:
- pelos ritmos e danças populares portuguesas e espanholas;
- pelo toque peculiar da guitarra ibérica;
- pela atmosfera sonora das ruas, festas e tradições locais.
Foi nesse contexto que compôs suas célebres 555 sonatas para cravo, a maior parte escrita em Madri.
As sonatas para cravo
Arredias à forma rígida e acadêmica, as sonatas de Scarlatti são pequenas peças — geralmente estruturadas em um único movimento bipartido —, mas repletas de ideias originais. Cada uma é como um laboratório sonoro onde o compositor experimenta ousadias técnicas e expressivas.
Características marcantes:
- Uso de saltos amplos e cruzamento de mãos, exigindo grande habilidade do intérprete.
- Harmonia ousada, com modulações inesperadas e dissonâncias incomuns na época.
- Influência ibérica evidente, como imitações de guitarras, castanholas, toques flamencos e ritmos de danças populares.
- Virtuosismo atlético, transformando o teclado em um instrumento de energia e brilho percussivo.
- Inventividade melódica, que alterna momentos de delicadeza lírica com passagens de exuberância rítmica.
Apesar da forma simples, cada sonata é um universo próprio. Entre as mais famosas estão a K.141, marcada por repiques quase guitarrísticos; a K.27, de grande profundidade expressiva; e a K.380, de caráter majestoso e luminoso.
Trabalho e personalidade
Fontes históricas sugerem que Scarlatti era um homem reservado, dedicado à música e profundamente leal à rainha Maria Bárbara, a quem considerava amiga e patrona. Sua obra para teclado parece ter sido escrita tanto como exercícios para a rainha — que era uma excelente cravista — quanto como exercícios de criatividade pessoal. Cada sonata demonstra uma liberdade incomum para o século XVIII, como se Scarlatti não estivesse preocupado com o prestígio acadêmico, mas sim com a descoberta de novas possibilidades técnicas e sonoras.
Legado
Embora relativamente ignorado após sua morte, Domenico Scarlatti foi revalorizado no século XIX e especialmente no século XX, quando pianistas como Vladimir Horowitz, Wanda Landowska e Marcelle Meyer ajudaram a divulgar suas sonatas. Hoje ele é visto como um precursor de muitas inovações pianísticas posteriores e como um mestre da miniatura musical.
Além de sua importância técnica, Scarlatti deixou uma contribuição artística singular: a fusão entre o rigor do barroco e o frescor da música popular ibérica. Sua obra demonstra que a genialidade pode florescer fora dos grandes centros, e que o teclado, nas mãos certas, pode capturar tanto a alma de um povo quanto a profundidade da tradição europeia.
Conclusão
Domenico Scarlatti é um compositor cuja vida e obra fogem ao padrão esperado de um músico do barroco tardio. Sua jornada, que começou nas cortes italianas e encontrou plenitude na Península Ibérica, produziu uma das coleções mais originais de peças para teclado já escritas. Cheias de energia, cor e inventividade, suas sonatas continuam a desafiar intérpretes e a encantar ouvintes. Hoje, ele é celebrado como um dos grandes inovadores do repertório instrumental e como um espírito livre que transformou o cravo — e, mais tarde, o piano — em palco de experimentações inesgotáveis.
Até mais!
Tête-à-Tête

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