Publicado em 1883, A Morte de um Funcionário é um dos contos mais conhecidos do início da carreira de Anton Tchékhov e um dos melhores exemplos de sua habilidade para criar sátiras rápidas, inteligentes e profundamente críticas. Em poucas páginas, o autor expõe com humor mordaz a fragilidade humana diante da autoridade e a violência psicológica produzida por sistemas burocráticos hierarquizados.
O conto, aparentemente simples, é um retrato duro — embora cômico — de como o servilismo e a obsessão pelo status podem destruir a dignidade de uma pessoa e, em casos extremos, até sua vida.
O enredo: um espirro e o desastre
O protagonista é Ivan Dmitrievich Tchiúkhov, um pequeno funcionário público russo. Durante uma apresentação no teatro, ele espirra acidentalmente e, para seu desespero, percebe que o espirro atinge ninguém menos que o general Brizjalov, sentado à sua frente.
A partir desse incidente banal, uma verdadeira tragédia interior começa. Tchiúkhov, dominado pelo respeito excessivo à autoridade e pela humilhação, sente que cometeu um crime imperdoável. Ele se apressa em pedir desculpas, mas cada tentativa é mais embaraçosa e desesperada do que a anterior.
O general, surpreso e ligeiramente incomodado, diz várias vezes que “não é nada”, mas Tchiúkhov não consegue aceitar essa resposta. Ele imagina que sua carreira está arruinada, que será punido de maneira exemplar, que sua reputação se perdeu para sempre.
O drama cresce, não porque o general o ameace, mas porque o próprio Tchiúkhov cria sua punição — uma tortura mental alimentada pelo medo e pela obsessão com a hierarquia.
Ao final, depois de repetir suas desculpas até irritar de fato o general, que agora o manda embora com frieza e impaciência, Tchiúkhov desaba completamente. Vai para casa, deita no sofá — e morre.
A sátira social: o servilismo como doença moral
O conto é uma crítica clara ao sistema burocrático do Império Russo, onde posições hierárquicas definiam não apenas o trabalho, mas o valor humano. Tchiúkhov encarna o indivíduo que internalizou tão profundamente a lógica do poder que já não sabe existir sem temê-lo.
Para Tchékhov:
- A hierarquia destrói a espontaneidade.
- A autoridade imaginária é tão opressiva quanto a real.
- O medo do superior impede o indivíduo de viver com dignidade.
- O poder simbólico pode ser mais mortal que o físico.
A morte de Tchiúkhov é absurda e trágica, mas não gratuita: ela simboliza o aniquilamento da subjetividade pela submissão extrema. Ele não morre do espirro, mas do pânico de existir.
Humor e tragédia: o estilo tchekhoviano
O conto é uma pérola de humor, mas um humor que deixa um sabor amargo. Tchékhov não ridiculariza Tchiúkhov por maldade; ao contrário, usa a comédia para revelar a crueldade de um sistema que transforma pessoas comuns em seres frágeis, ansiosos e incapazes de se reconhecer como sujeitos livres.
O ritmo do texto é ágil:
- situações repetitivas,
- diálogos tensos,
- progressão rápida da paranoia,
- final abrupto e impactante.
Esse contraste entre leveza narrativa e densidade crítica é marca registrada de Tchékhov.
Um personagem universal
Embora situado na Rússia czarista, Tchiúkhov é um personagem universal. Ele representa todos os que:
- temem figuras de autoridade,
- dependem do reconhecimento alheio,
- vivem sob pressão social,
- internalizam hierarquias injustas,
- se anulam para agradar superiores,
- se culpam por insignificâncias.
O conto ressoa em qualquer sociedade onde a burocracia e os jogos de poder continuam moldando comportamentos.
Conclusão
A Morte de um Funcionário é um conto curto, mas de enorme força crítica. Tchékhov transforma um gesto trivial — um espirro — em uma parábola sobre servilismo, medo, alienação e autodestruição. Com humor fino e olhar compassivo, o autor mostra como uma sociedade obcecada por autoridade pode transformar a vida de um sujeito comum em um labirinto de angústia.
A história permanece atual, lembrando-nos de que a dignidade humana não pode depender da aprovação de quem ocupa posições superiores — e de que o medo excessivo do poder pode ser mortal, ainda que de forma lenta e silenciosa.
Até mais!
Tête-à-Tête

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