Publicado em 1936, “A Mulher que Fugiu de Sodoma” é o romance de estreia de José Geraldo Vieira, escritor, crítico de arte e tradutor brasileiro que se destacou por uma prosa refinada, poética e profundamente influenciada pela literatura europeia e pelo simbolismo cristão. A obra inaugura uma trajetória literária marcada pela introspecção psicológica, espiritualidade e críticas ao esvaziamento moral da sociedade moderna.
Este romance é uma combinação ousada entre erotismo, misticismo, denúncia social e alegoria bíblica, onde o autor utiliza a figura de Sodoma como um símbolo da degradação moral e existencial do mundo burguês ocidental. Embora ambientado em tempos contemporâneos à escrita, o livro possui um clima atemporal e universal que o aproxima de uma fábula moral.
A Trama
A narrativa gira em torno de uma mulher que abandona seu meio social – marcado pelo artificialismo, pelas convenções hipócritas e por uma sensualidade vazia – para buscar uma vida que transcenda a decadência em que vivia. Inspirando-se no mito bíblico de Ló e sua mulher, que, ao fugir da destruição de Sodoma, é punida por olhar para trás e se transforma em estátua de sal, José Geraldo Vieira reinterpreta esse episódio sob uma perspectiva moderna e feminista.
A protagonista, cujo nome não é centralizado (como em outras obras que focam mais no arquétipo que no indivíduo), representa a mulher consciente da falência dos valores que regem sua vida social e afetiva. Fugir de “Sodoma” é, assim, romper com o mundo do prazer corrompido, das aparências e da alienação.
Temas Centrais
Moralidade e decadência:
Sodoma, como figura simbólica, representa a corrupção dos valores morais da elite urbana. O autor não é moralista no sentido convencional; sua crítica é mais profunda, espiritual, mostrando como a falta de sentido e a busca desenfreada por prazer tornam a vida vazia. A mulher foge da cidade, da superficialidade, da falsidade sentimental – e esse gesto é visto como um ato de salvação e não de pecado.
Espiritualidade e redenção:
Há, em todo o livro, uma tensão entre carne e espírito, matéria e transcendência. José Geraldo Vieira cria passagens líricas onde o pensamento religioso cristão é retomado de maneira artística e simbólica. A fuga da personagem principal é também uma jornada interior, em busca de si mesma e de um contato mais autêntico com o divino.
Erotismo e crítica social:
O romance é permeado por uma sensualidade sofisticada, não vulgar. O erotismo aparece como reflexo de uma sociedade que erotiza tudo, mas esvazia o amor e o contato humano. Nesse sentido, o autor denuncia tanto o puritanismo quanto a promiscuidade sem alma.
Estilo e linguagem
A linguagem de José Geraldo Vieira é rica, metafórica e de alta densidade poética. Diferente de seus contemporâneos modernistas, que buscavam uma prosa coloquial e enxuta, ele constrói frases longas, carregadas de referências simbólicas, literárias e teológicas. Em muitos momentos, a leitura se aproxima de um exercício contemplativo, exigindo atenção do leitor, mas também recompensando com imagens poderosas e reflexões profundas.
A prosa lembra autores europeus como Dostoievski, Proust e Thomas Mann, além de ter ecos do simbolismo francês. Essa filiação intelectual distingue Vieira do regionalismo dominante na literatura brasileira da época.
Personagens
Os personagens são menos figuras realistas e mais tipos simbólicos. A mulher que foge de Sodoma representa a alma em busca de redenção; outros personagens funcionam como representantes do mundo corrompido que ela abandona – figuras de conveniência, vaidade, egoísmo e falso amor. Há, ainda, figuras místicas e paisagens que funcionam como estados de espírito.
Recepção crítica
Na época de sua publicação, “A Mulher que Fugiu de Sodoma” causou impacto por seu estilo refinado e por seu conteúdo ousado, mas também enfrentou resistência por fugir das tendências dominantes do modernismo brasileiro. José Geraldo Vieira não se inseria na mesma linhagem de escritores como Graciliano Ramos ou Jorge Amado, que estavam voltados para o realismo social. Seu projeto era outro: uma literatura existencial e religiosa, voltada para a crise da alma moderna.
Com o passar do tempo, críticos passaram a valorizar a singularidade de sua obra. Vieira passou a ser reconhecido como um autor “fora do tempo”, mas necessário, alguém que construiu um universo literário próprio, com forte base filosófica, psicológica e espiritual.
Conclusão
“A Mulher que Fugiu de Sodoma” é um romance denso, filosófico e belo, que mergulha nas contradições da alma humana e da sociedade moderna. Ao usar a alegoria bíblica como ponto de partida, José Geraldo Vieira constrói uma narrativa atemporal sobre a busca por autenticidade, redenção espiritual e recusa da hipocrisia social.
Não é uma leitura fácil, tampouco rápida. É um livro para ser lido com tempo e atenção, saboreado como se saboreia um vinho raro. Para leitores que apreciam literatura com profundidade simbólica e questionamentos existenciais, é uma verdadeira joia da prosa brasileira, ainda injustamente pouco lida.
Até mais!
Tête-à-Tête

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