Desde o Romper da Aurora (Rites of Spring: The Great War and the Birth of the Modern Age), de Modris Eksteins, é uma obra que transcende os limites da história militar para analisar a Primeira Guerra Mundial como um divisor cultural e espiritual da modernidade. Mais do que descrever batalhas e tratados, o autor interpreta a guerra como uma experiência que remodelou profundamente a consciência ocidental, influenciando a arte, a política e a forma de compreender a existência. Publicado originalmente em 1989.
Uma história cultural da Grande Guerra
Eksteins parte de um acontecimento simbólico: a estreia do balé A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, em 1913, em Paris. O escândalo causado pela música e pela coreografia violenta e revolucionária tornou-se, na visão do autor, um prenúncio do colapso das formas tradicionais da cultura europeia. O espetáculo não representava apenas uma inovação estética, mas o anúncio de uma nova sensibilidade marcada pela ruptura, pela energia vital desordenada e pela vontade de destruição criadora.
Essa introdução já mostra o método de Eksteins: ele não trata a guerra apenas como um fenômeno político ou econômico, mas como um evento cultural total, capaz de desestruturar valores estabelecidos e inaugurar um novo horizonte para o século XX. A Primeira Guerra é apresentada como um ritual de passagem – doloroso e devastador – para a modernidade.
O contraste entre Alemanha e Inglaterra
Um dos pontos centrais da análise de Eksteins é o contraste entre a Alemanha e a Inglaterra no início do século XX. Segundo ele, a Alemanha representava a busca de um novo dinamismo cultural, marcado por ideias de vitalidade, criatividade e ruptura com a ordem burguesa do século XIX. Já a Inglaterra simbolizava a tradição, a estabilidade e a defesa de valores liberais e democráticos que pareciam resistir à mudança.
A guerra, portanto, não teria sido apenas um conflito de interesses territoriais, mas uma disputa simbólica entre duas visões de mundo: de um lado, a energia criadora e destrutiva que aspirava a um futuro radicalmente novo; de outro, a preservação de uma ordem estabelecida. Esse embate entre ruptura e continuidade acabou por moldar não apenas o curso da guerra, mas também o desenvolvimento cultural posterior.
A guerra como experiência existencial
Eksteins dedica atenção à experiência cotidiana dos soldados e à forma como a guerra impactou a percepção da vida e da morte. A lama das trincheiras, o uso de novas tecnologias bélicas e o massacre em larga escala criaram uma experiência de absurdo e desumanização que abalou definitivamente a confiança no progresso e na racionalidade iluminista.
Contudo, essa mesma experiência gerou um fascínio paradoxal. Muitos soldados viam a guerra como um ato quase religioso de purificação, uma imersão na violência que, de algum modo, revelava uma intensidade de vida perdida no mundo burguês pacificado. Esse ponto ajuda a entender por que tantos veteranos se tornaram, no pós-guerra, militantes políticos radicais, fascinados por ideologias totalitárias que prometiam sentido e ordem no caos.
As consequências culturais
O livro não se limita a tratar do conflito armado em si. Eksteins analisa também como a guerra influenciou diretamente a arte, a literatura, o cinema e até a vida cotidiana. O modernismo artístico – com sua quebra de formas, sua busca pelo choque e pela novidade – foi alimentado pela experiência da guerra e pelo colapso dos valores tradicionais.
A ascensão do nazismo e do fascismo, por sua vez, é vista como um prolongamento desse impulso vitalista e irracional que encontrou terreno fértil após a derrota da Alemanha e o ressentimento gerado pelo Tratado de Versalhes. Já a cultura de massa dos anos 1920, marcada pelo consumo, pelo entretenimento e pela celebração da juventude, também aparece como herdeira dessa experiência de transformação radical.
Um olhar original sobre a modernidade
O grande mérito de Desde o Romper da Aurora está na forma como Eksteins costura história política, social e cultural em uma narrativa fluida e interpretativa. Ele mostra que a Primeira Guerra não pode ser entendida apenas em termos de estratégias militares ou diplomáticas, mas como um marco civilizatório que redefiniu a relação do Ocidente consigo mesmo.
A guerra inaugurou um século de paradoxos: de um lado, a criatividade explosiva das vanguardas artísticas, da psicanálise, da ciência e da tecnologia; de outro, a barbárie dos campos de extermínio, dos regimes totalitários e da violência em escala industrial. Essa ambivalência, segundo Eksteins, nasceu da experiência fundadora da Grande Guerra.
Estilo e recepção
O estilo de Eksteins é acessível e envolvente, ainda que erudito. Ele não escreve como um historiador preso a dados cronológicos, mas como um intérprete da cultura, capaz de unir fatos, símbolos e obras de arte em uma narrativa coerente. Isso faz com que o livro seja apreciado não apenas por especialistas em história, mas também por leitores interessados em literatura, filosofia e artes.
Desde sua publicação, Desde o Romper da Aurora foi aclamado como uma das obras mais originais sobre a Primeira Guerra Mundial, justamente por romper com a visão tradicional e propor uma leitura cultural da modernidade.
Desde o Romper da Aurora, de Modris Eksteins, é muito mais do que uma história da Primeira Guerra Mundial: é um ensaio sobre o nascimento da modernidade e sobre como a experiência do conflito remodelou a cultura ocidental. A obra mostra que a guerra foi, ao mesmo tempo, uma catástrofe e um impulso criador, gerando tanto destruição quanto novas formas de expressão artística e política.
Ao destacar o papel da guerra como um rito de passagem, Eksteins nos ajuda a compreender por que o século XX foi marcado por contrastes tão radicais: progresso e destruição, liberdade e tirania, criatividade e barbárie. Essa ambiguidade, ainda presente em nossos dias, tem sua raiz, como o autor demonstra com maestria, desde o romper da aurora de 1914.
Até mais!
Tête-à-Tête

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