Escrita e encenada pela primeira vez em 1672, As Mulheres Sábias (Les Femmes savantes), de Molière, é uma comédia em versos alexandrinos que combina crítica social, observação psicológica e humor refinado. A peça satiriza tanto o pedantismo intelectual quanto a superficialidade de quem busca prestígio social pela aparência de erudição, sem compromisso genuíno com o conhecimento.
O enredo é construído sobre um conflito familiar, mas seu alcance vai além da simples trama doméstica: Molière critica a moda, comum no século XVII francês, de círculos literários e filosóficos onde a busca pelo saber muitas vezes se confundia com afetação e vaidade. Ao mesmo tempo, expõe o choque entre uma educação racional e o exagero de um idealismo artificial.
Contexto histórico e cultural
Na França de Luís XIV, o prestígio cultural estava em alta. Salões literários floresciam, reunindo nobres, escritores e filósofos para discutir poesia, filosofia, ciência e moral. No entanto, esse ambiente também produziu um tipo de “intelectualismo de fachada”, onde o refinamento verbal e o conhecimento superficial serviam mais como símbolo de status do que como busca autêntica pela verdade.
As mulheres começaram a ter papel mais ativo nesses salões, o que, embora positivo em termos de participação social, abriu espaço para críticas àquelas que transformavam o cultivo intelectual em moda ou ostentação. Molière, com seu olhar satírico e atento, aproveitou esse cenário para criar uma peça que mistura observação social e caricatura.
Enredo
A peça gira em torno da família de Filaminta, a matriarca que domina o lar com sua obsessão pela erudição. Ela, junto com sua filha mais velha, Armanda, cultiva uma devoção quase religiosa à filosofia, às letras e à ciência — não tanto pela utilidade ou pelo prazer genuíno, mas como símbolo de distinção social.
O problema começa quando Henriqueta, a filha mais nova, deseja se casar com Clitandro, um jovem de bom senso que despreza a afetação pedante. Filaminta e Armanda, no entanto, querem que Henriqueta se case com Trissotin, um poeta medíocre e bajulador, cuja presença na casa serve mais para reforçar a “imagem culta” da família do que para oferecer qualquer felicidade real à noiva.
O pai, Crisalo, homem simples e prático, tenta opor-se ao exagero intelectual da esposa e da filha, defendendo o casamento por amor e a moderação no cultivo do saber. Entre discussões, jogos de vaidade e intrigas, Molière constrói uma trama que contrapõe dois modos de ver o mundo: o conhecimento como ferramenta para viver melhor e o conhecimento como ornamento social.
Personagens principais
- Filaminta – A mãe autoritária e pedante, que vê na erudição o ápice da realização pessoal, mas a encara de forma superficial e dogmática.
- Armanda – Filha mais velha, que rejeita o casamento em nome de uma vida dedicada ao “intelecto”, mas cujo idealismo esconde orgulho e rivalidade com a irmã.
- Henriqueta – A filha mais nova, prática e sensata, que representa o equilíbrio e o bom senso.
- Crisalo – O pai, que tenta manter a paz familiar e se opõe às excentricidades da esposa.
- Clitandro – Pretendente de Henriqueta, símbolo do raciocínio equilibrado e da crítica ao pedantismo.
- Trissotin – Poeta medíocre, bajulador e oportunista, cuja falsa erudição serve de alvo direto da sátira.
- Bélise – Tia sonhadora e afetada, que acredita que todos os homens estão apaixonados por ela, reforçando o tom cômico.
Temas centrais
- Pedantismo e vaidade intelectual
A crítica central de Molière recai sobre a afetação cultural: personagens como Filaminta e Armanda buscam mais parecer cultas do que ser cultas de fato. O saber, para elas, é um adorno social que as coloca acima dos outros, não uma ferramenta de compreensão do mundo. - Gênero e papel da mulher
Embora a peça possa ser lida como uma crítica à participação superficial de algumas mulheres na vida intelectual, ela também reflete a tensão entre a crescente presença feminina no debate cultural e a resistência masculina a essa mudança. Molière, no entanto, evita simplificações: sua crítica não é à educação das mulheres, mas ao uso do saber como vaidade. - Amor versus conveniência social
O conflito entre o desejo de Henriqueta e as imposições da mãe mostra o choque entre escolhas pessoais e estratégias sociais de ascensão. - Sátira social
Molière expõe um tipo social recorrente no século XVII: o do “pseudo-intelectual” que decora citações, exibe palavras difíceis e participa de círculos literários mais para ser visto do que para aprender.
Estilo e linguagem
A peça é escrita em versos alexandrinos rimados, marca da alta comédia francesa da época. O humor nasce tanto das situações quanto da escolha precisa das palavras. O contraste entre a pompa do discurso e a trivialidade das ideias é explorado com maestria, fazendo de As Mulheres Sábias uma crítica elegante, mas mordaz.
O diálogo é rápido, cheio de réplicas irônicas e mal-entendidos que evidenciam o ridículo dos personagens pedantes. Molière combina caricatura e realismo, criando figuras exageradas mas reconhecíveis, que permanecem atuais.
Recepção e atualidade
Na época, As Mulheres Sábias foi recebida com entusiasmo por uns e com ressentimento por outros, especialmente entre aqueles que se viram retratados na peça. A crítica ao pedantismo ecoou em uma sociedade que começava a valorizar o saber como símbolo de distinção, mas que ainda estava presa à superficialidade e às aparências.
Hoje, a peça mantém sua força justamente por satirizar um comportamento atemporal: o de buscar status por meio de um conhecimento de fachada. Em tempos de redes sociais e “opiniões prontas” disseminadas na internet, a figura do pseudo-intelectual é mais atual do que nunca.
Conclusão
As Mulheres Sábias é mais que uma comédia de costumes: é um estudo sobre vaidade, poder e relações humanas. Molière, com sua habilidade em criar personagens memoráveis e diálogos afiados, transforma a crítica social em entretenimento inteligente.
Ao mostrar que o conhecimento, quando buscado apenas como ornamento, perde seu valor transformador, a peça convida o público — de ontem e de hoje — a refletir sobre o verdadeiro sentido da cultura e da educação.
Com essa obra, Molière reforça sua posição como um dos grandes observadores do comportamento humano, provando que a sátira, quando bem construída, atravessa séculos sem perder a relevância.
Até mais!
Tête-à-Tête

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