Ernest Hemingway é um dos grandes nomes da literatura do século XX. Seu estilo direto, econômico e carregado de subtexto — muitas vezes descrito como a “teoria do iceberg” — influenciou gerações de escritores e tornou-se uma marca registrada da prosa moderna. Em As Neves do Kilimanjaro e Outros Contos (The Snows of Kilimanjaro and Other Stories), temos acesso a uma coletânea de histórias que condensam o melhor de sua produção narrativa curta, revelando temas recorrentes como a morte, a guerra, a masculinidade, o fracasso e a redenção.


O conto-título: uma meditação sobre a morte e a criação

“As Neves do Kilimanjaro”, conto que dá nome à coletânea, é considerado um dos melhores de Hemingway e uma verdadeira síntese de sua sensibilidade artística. Nele, acompanhamos o escritor Harry, ferido por uma infecção gangrenosa durante uma expedição na África. Enquanto espera pela morte, imobilizado em uma barraca, ele mergulha em pensamentos sobre a própria vida, revisitando momentos desperdiçados, amores passados e frustrações artísticas.

A história é poderosa tanto em sua estrutura quanto em seu conteúdo. Hemingway alterna as descrições do presente — com diálogos e a tensão entre Harry e sua companheira — com os fluxos de consciência que trazem à tona lembranças de sua juventude, da guerra, das cidades europeias. O conto aborda com maestria o medo do fracasso criativo: Harry lamenta não ter escrito tudo o que poderia e deveria ter escrito. Ele é um artista diante do fim, assombrado não só pela morte física, mas pela morte simbólica do seu potencial não realizado.

O Kilimanjaro, com sua imagem majestosa e gelada, funciona como um símbolo de pureza, elevação e, paradoxalmente, de silêncio — o silêncio da morte e daquilo que jamais será dito.


O estilo hemingwayano em sua melhor forma

A coletânea é um exemplo notável do estilo característico de Hemingway: frases curtas, vocabulário simples, subtexto profundo. Sua escrita nunca se entrega à ornamentação ou à explicação excessiva. Em vez disso, Hemingway confia no leitor — e na força da cena — para comunicar emoções e conflitos.

Em contos como O Atendente de Indian Camp (Indian Camp) e O Indesejado do País (The Outstation), vemos sua habilidade em sugerir, mais do que expor. Um pai que ensina o filho a enfrentar a dor; um funcionário colonial lidando com tensões raciais — os eventos externos são simples, mas carregam um mundo de ambiguidade emocional e moral.


Homens em guerra, homens em crise

Outro fio condutor da coletânea é o tema da guerra — não apenas como pano de fundo histórico, mas como experiência transformadora (e muitas vezes traumática) dos personagens. Hemingway, que foi motorista de ambulância na Primeira Guerra Mundial e correspondente na Guerra Civil Espanhola e na Segunda Guerra Mundial, escreve sobre o conflito com autoridade e sensibilidade.

No conto Na Outra Margem do Rio, Entre as Árvores, o envelhecimento do coronel americano dialoga com o tempo perdido e as cicatrizes deixadas pelo combate. Já em Os Assassinos (The Killers), a violência é iminente e inexplicável — um homem está prestes a ser morto por dois assassinos de aluguel, e a banalidade com que isso é tratado revela o niilismo crescente no mundo moderno.

Nos bastidores dessas histórias, paira a imagem do homem desiludido, que carrega os pesos do passado e tenta manter algum tipo de dignidade — ou pelo menos de resistência — diante da brutalidade da existência.


A natureza como palco do humano

Em muitas narrativas de Hemingway, a natureza desempenha um papel central — não apenas como cenário, mas como antagonista, confidente ou reflexo do estado interior dos personagens. O campo de caça, o rio cheio de trutas, a savana africana: esses ambientes não estão ali por acaso. São espaços de teste, de introspecção, de redenção ou de revelação.

O conto O Rio das Duas Corações (Big Two-Hearted River) talvez seja o melhor exemplo. Nick Adams, personagem recorrente de Hemingway, viaja sozinho após a guerra para pescar em um rio no interior de Michigan. A descrição detalhada da paisagem e da pesca é quase terapêutica: não é apenas sobre pegar peixes, mas sobre reencontrar um sentido, reorganizar os pensamentos, cicatrizar feridas invisíveis. É um conto sobre silêncio, trauma e reconstrução.


A masculinidade como conflito

Hemingway é frequentemente associado a uma visão arquetípica da masculinidade: o caçador, o soldado, o boxeador. No entanto, em seus contos, essa figura masculina é muitas vezes problematizada. O homem hemingwayano está em crise — não por não ser viril, mas por estar esgotado, alienado, ou impotente diante das exigências sociais que lhe foram impostas.

Contos como O Sol Também se Levanta (embora parte de um romance) ecoam essa tensão, e ela está presente aqui também, de forma concentrada. A masculinidade é testada em situações extremas, mas raramente celebrada — o que existe é uma melancolia quase constante, uma aceitação estoica da falibilidade humana.


Feminilidade e ambivalência

As personagens femininas nas histórias de Hemingway foram alvo de muita crítica, sendo por vezes vistas como unidimensionais ou estereotipadas. No entanto, nesta coletânea há casos em que elas aparecem com força dramática relevante. Em As Neves do Kilimanjaro, a mulher rica e apaixonada por Harry é ao mesmo tempo fonte de conforto e de ressentimento — uma figura ambígua que serve como espelho das contradições internas do protagonista.

Ainda que os contos priorizem o olhar masculino, a presença feminina é, muitas vezes, o catalisador do conflito ou o espelho do vazio existencial dos personagens. Não se trata de heroínas, mas de presenças significativas no drama humano.


Relevância e legado

As Neves do Kilimanjaro e Outros Contos permanece uma obra fundamental para compreender não só o projeto estético de Hemingway, mas também as angústias do século XX — especialmente as da primeira metade, marcadas por guerras, mudanças sociais abruptas e uma crescente sensação de perda de sentido.

Hemingway escreve com a brutalidade dos fatos, mas também com a sensibilidade de quem sabe que há muito mais por trás do que é dito. Seus personagens não são heróis ou vilões, mas homens e mulheres tentando sobreviver às suas próprias histórias mal resolvidas.

Essa coletânea é uma excelente porta de entrada para novos leitores e, ao mesmo tempo, uma preciosidade para aqueles já familiarizados com a obra do autor. Ela permite o mergulho em sua visão de mundo: seca, dura, mas não desprovida de beleza ou de uma esperança trêmula — aquela que vive justamente na tentativa de dar sentido ao absurdo.


Até mais!

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