No ano de 1662, Molière trouxe aos palcos parisienses uma comédia que, embora escrita no século XVII, ainda provoca reflexões relevantes: A Escola de Mulheres (L’École des femmes). A peça, uma das mais polêmicas de sua carreira, aborda com ironia e inteligência as relações entre homens e mulheres, revelando os perigos do orgulho masculino e da tentativa de controlar o outro. A história gira em torno de Arnolfo, um homem obcecado pela ideia de formar para si uma esposa perfeita, e acaba surpreendido justamente por aquilo que mais temia: a autonomia e a inteligência feminina.
A Premissa Central: Educação ou Dominação?
O protagonista, Arnolfo, é um homem de certa idade que, por medo de traições e para garantir sua honra, decide adotar uma estratégia pouco usual: educar ele mesmo a jovem com quem pretende se casar. Sua escolhida é Inês, uma moça inocente que ele cria desde a infância, afastada do mundo e mantida na ignorância das coisas da vida, principalmente em relação aos homens. Arnolfo acredita que, dessa forma, ela será fiel, obediente e imune aos perigos da infidelidade.
Esse projeto revela desde o início um tema que percorre toda a obra: o desejo masculino de moldar a mulher segundo suas próprias expectativas, anulando sua liberdade e individualidade. Molière transforma essa ideia em comédia, mas por trás das situações engraçadas, há uma crítica clara às estruturas sociais e culturais de seu tempo.
O Orgulho Masculino em Cena
Arnolfo é, acima de tudo, um personagem movido pelo orgulho. Sua preocupação não é com o amor verdadeiro, mas com a manutenção de sua reputação. Ele teme tornar-se alvo de zombarias caso sua esposa o traia — uma obsessão que reflete a importância da honra masculina na sociedade do século XVII. Para evitar esse destino, ele age como um “engenheiro social doméstico”, tentando controlar não apenas as ações, mas os próprios pensamentos de Inês.
No entanto, como Molière demonstra de maneira sutil, o próprio projeto de Arnolfo carrega o germe de sua ruína. Sua arrogância o impede de perceber que é impossível controlar totalmente outro ser humano. A comédia surge justamente do contraste entre suas expectativas rígidas e a realidade cheia de imprevistos e desejos próprios de Inês.
A Autonomia de Inês: Mais do que uma Ingênua
Ao contrário do que Arnolfo espera, Inês não permanece passiva. Mesmo criada em um ambiente de clausura e ignorância, ela demonstra sensibilidade, curiosidade e inteligência. Quando conhece Horácio, um jovem que se apaixona por ela, Inês revela-se capaz de amar e de decidir por si mesma, rompendo com o papel que lhe foi imposto.
Essa virada é essencial para a crítica social de Molière. Inês simboliza a mulher que, mesmo oprimida por regras e expectativas, não deixa de ser um indivíduo com vontade própria. A peça questiona, assim, não apenas a figura de Arnolfo, mas uma cultura que considera legítimo restringir a liberdade feminina em nome da honra masculina.
O Jogo de Enganos e Revelações
Como em outras obras de Molière, a trama se desenrola por meio de um jogo de disfarces, segredos e revelações gradativas. Horácio, sem saber que Arnolfo é o tutor de Inês, compartilha com ele confidências sobre seu romance com a jovem. Arnolfo, dividido entre o disfarce e a realidade, tenta controlar a situação, mas aos poucos perde o controle que acreditava ter.
Esse jogo de ironias e mal-entendidos é típico da comédia clássica, mas em A Escola de Mulheres serve também para ilustrar a fragilidade das estruturas sociais baseadas no autoritarismo e no controle. Por mais que Arnolfo tente esconder a verdade, ela acaba vindo à tona — não apenas sobre os sentimentos de Inês, mas também sobre o próprio ridículo de suas pretensões.
A Moral da História: Uma Crítica à Sociedade Patriarcal
No final da peça, os planos de Arnolfo fracassam completamente. Inês é reconhecida como filha legítima de uma família nobre e, portanto, livre para escolher seu destino. Ela termina ao lado de Horácio, enquanto Arnolfo fica isolado, vítima de sua própria armadilha.
A lição deixada por Molière é clara: tentar controlar as pessoas por medo ou vaidade é sempre um projeto fadado ao fracasso. E mais: as mulheres, por mais oprimidas que possam estar pelas estruturas sociais, não são apenas objetos ou instrumentos da vontade masculina. Elas pensam, sentem, decidem — e resistem.
O Impacto da Peça em Seu Tempo
L’École des femmes provocou controvérsia logo após sua estreia. Muitos críticos consideraram-a indecente ou perigosa por questionar valores morais estabelecidos. Molière teve que responder às acusações, inclusive por meio de outras peças, como A Crítica da Escola de Mulheres (La Critique de l’École des femmes), onde defende sua obra e discute as ideias nela contidas.
O fato de um dramaturgo do século XVII abordar de maneira tão clara as questões da liberdade feminina, do casamento por conveniência e do controle social revela a ousadia intelectual de Molière. Ele não se limitava a entreter: usava o palco como espaço para o debate moral e social.
Atualidade do Tema
Apesar de terem se passado mais de três séculos desde sua primeira apresentação, os temas de A Escola de Mulheres continuam surpreendentemente atuais. A tentativa de moldar o outro segundo nossos desejos, as estruturas de poder disfarçadas de proteção, o medo masculino da autonomia feminina — são questões que permanecem vivas nos debates contemporâneos sobre gênero e sociedade.
A peça também oferece um olhar crítico sobre o papel da educação. Não basta transmitir conhecimentos ou valores: é preciso respeitar a liberdade e o desenvolvimento autêntico de cada indivíduo. Educar não é domesticar, e amor não é controle.
Considerações Finais
A Escola de Mulheres é mais do que uma comédia de costumes: é uma peça de ideias. Molière, com sua maestria teatral, constrói personagens que encarnam problemas morais universais. Arnolfo, com sua obsessão pelo controle, representa uma faceta do ser humano que teme o imprevisto e busca segurança absoluta — mesmo às custas da liberdade alheia.
Ao mostrar o fracasso desse projeto, Molière não apenas faz rir, mas também convida o público a refletir sobre suas próprias atitudes. Será que, em nossas relações, não tentamos também, muitas vezes, transformar o outro em uma espécie de “produto sob medida” para nossos desejos e inseguranças?
Esse é o valor duradouro de A Escola de Mulheres: uma crítica elegante e profunda aos excessos do orgulho humano e às ilusões do poder sobre o outro, sempre embalada pelo humor inteligente que caracteriza a melhor tradição do teatro francês.
Até mais!
Tête-à-Tête

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