Publicado em 1930, Libertinagem é considerado um dos livros mais importantes da poesia modernista brasileira. Escrito por Manuel Bandeira, o livro reúne 38 poemas que consolidam sua voz poética singular: ao mesmo tempo coloquial e lírica, melancólica e bem-humorada, simples e reflexiva. A obra marca um momento de maturidade do autor dentro do modernismo, destacando-se por sua naturalidade expressiva e pelo equilíbrio entre tradição e renovação estética.

O título Libertinagem já indica o tom livre e despojado que Manuel Bandeira assume nesse livro. Mais do que um simples convite à liberdade formal, trata-se de um posicionamento existencial. A “libertinagem” não é entendida aqui apenas como licença moral, mas como uma disposição para viver poeticamente, rompendo com as convenções rígidas da poesia parnasiana e simbolista que dominavam as letras brasileiras até o início do século XX.

Manuel Bandeira, já conhecido por sua poesia desde A Cinza das Horas (1917) e Carnaval (1919), se aproxima em Libertinagem da estética modernista inaugurada pela Semana de Arte Moderna de 1922, ainda que mantendo uma voz pessoal, menos radical do que a dos primeiros modernistas. A marca principal é a liberdade formal: versos livres, linguagem coloquial, rimas irregulares ou ausentes, sem deixar de lado a musicalidade e a precisão das imagens.

Entre os poemas mais famosos da coletânea está “Vou-me embora pra Pasárgada”, provavelmente o poema mais conhecido de Bandeira. Nele, o poeta cria um lugar utópico onde tudo é possível: “Lá sou amigo do rei, / Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei.” Pasárgada, que Bandeira inventa a partir do nome de uma cidade persa, simboliza a fuga dos males da vida real — doença, frustração, morte — para um espaço de sonho e liberdade. O tom é leve, mas esconde uma profunda reflexão sobre o desejo de transcendência e o inconformismo diante das limitações humanas.

Outro poema marcante é “Poema só para Jaime Ovalle”, que representa bem a linguagem despojada e íntima que Bandeira explora em Libertinagem. A conversa entre poeta e leitor, o tom de confidência e de improviso, rompe com a solenidade da poesia clássica. Isso não significa, contudo, que haja descuido: cada palavra parece cuidadosamente colocada para criar uma atmosfera precisa.

O tema da morte é recorrente em Libertinagem, refletindo uma experiência pessoal de Manuel Bandeira: sua luta contra a tuberculose, que o acompanhou desde jovem e influenciou sua visão de mundo. No poema “Profundamente”, por exemplo, a morte aparece associada à memória e à saudade de figuras familiares, compondo um retrato de melancolia discreta, sem exageros sentimentais.

Além da morte, a infância e o erotismo também aparecem com frequência. Bandeira consegue tratar do erotismo com um humor que o torna acessível e até mesmo delicado, como se nota no poema “Pneumotórax”. Nesse texto, o poeta narra uma cena em que um jovem doente é informado, de forma quase casual, de que está condenado. A crueza da situação é suavizada pelo tom irônico, pelo jogo entre tragédia e banalidade.

No aspecto formal, Libertinagem é um livro de poesia que dialoga tanto com o passado quanto com o presente. Enquanto alguns poemas mantêm ecos do simbolismo e da poesia tradicional, outros assumem plenamente a proposta modernista de versos livres e linguagem cotidiana. Esse equilíbrio é uma das qualidades mais notáveis da obra: ela não renuncia completamente à tradição, mas também não se aprisiona a ela.

Outro ponto que merece destaque é o humor de Manuel Bandeira. Mesmo em temas graves como a morte ou a solidão, há sempre um espaço para o sorriso, para o jogo de palavras, para a ironia sutil. Essa leveza diante da vida e de seus inevitáveis dramas é uma das marcas mais duradouras do poeta.

Comparado aos outros modernistas da primeira geração, como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, Manuel Bandeira parece menos preocupado com manifestos ou declarações programáticas. Sua poesia é mais voltada para a experiência pessoal, para o lirismo íntimo, sem deixar de refletir sobre questões coletivas e universais. Em Libertinagem, esse equilíbrio entre o individual e o coletivo, entre o cotidiano e o eterno, se manifesta de forma madura e segura.

No contexto da literatura brasileira, Libertinagem é um livro que ajudou a definir uma nova sensibilidade poética. Sua influência pode ser percebida em autores posteriores, tanto pela forma livre quanto pelo tom confessional e pelo olhar afetuoso sobre as pequenas coisas da vida. Bandeira mostra que a poesia pode tratar do trivial sem perder profundidade, que o simples pode ser belo e significativo.

Alguns críticos apontam que Libertinagem representa o “momento alto” da poesia de Bandeira, quando ele alcança um equilíbrio quase perfeito entre forma, conteúdo e emoção. De fato, é possível ver na obra uma síntese das principais características do autor: o gosto pelo verso livre, o uso da linguagem cotidiana, o lirismo discreto, o humor leve e a reflexão melancólica sobre a existência.

Em resumo, Libertinagem é uma obra indispensável para quem deseja compreender não apenas a poesia de Manuel Bandeira, mas também o espírito do modernismo brasileiro. Trata-se de um livro que continua atual, não apenas por sua liberdade formal, mas principalmente por sua honestidade poética. Bandeira não escreve para impressionar ou para chocar; escreve para dizer, com simplicidade e beleza, aquilo que é essencial e humano. Um clássico que, mesmo depois de quase um século, mantém sua força e sua delicadeza.


Até mais!

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