Introdução
Publicado postumamente em 1948, o romance Clara dos Anjos, de Lima Barreto, é uma das obras mais emblemáticas do autor carioca, conhecido por sua crítica social ácida e por sua denúncia das injustiças da sociedade brasileira no início do século XX. Escrita entre 1904 e 1915, mas finalizada apenas por seus editores após a morte do autor, a obra traz à tona temas como o racismo estrutural, a hipocrisia burguesa, a condição da mulher negra e a desigualdade social.
Mais do que um simples romance de costumes, Clara dos Anjos é uma obra de denúncia social, profundamente marcada pela vivência pessoal de Lima Barreto como homem negro, periférico e marginalizado pela elite intelectual e política do seu tempo.
Enredo e estrutura narrativa
A trama gira em torno da jovem Clara dos Anjos, filha de um carteiro negro e de uma costureira, que vive nos subúrbios do Rio de Janeiro. Clara é uma moça honesta, sensível, de origem humilde e negra, que acaba se envolvendo com Cassi Jones, um típico malandro branco da zona urbana carioca, que a seduz com palavras doces e promessas falsas.
O enredo é relativamente simples: Clara é seduzida e abandonada, o que destrói sua reputação e dignidade diante da sociedade. Porém, o foco da obra não está apenas no drama individual da protagonista, mas sim na crítica ao sistema social que permite que tal injustiça aconteça impunemente.
A narrativa é conduzida por um narrador em terceira pessoa, que ora se posiciona como observador externo, ora se envolve diretamente nos comentários e julgamentos sobre os personagens, em tom marcadamente crítico e irônico.
Personagens principais
Clara dos Anjos
Personagem-título da obra, Clara representa a mulher negra, pobre e subalterna no Brasil do início do século XX. É descrita como dócil, sonhadora e com um certo gosto artístico (gosta de música e poesia), mas extremamente vulnerável ao mundo ao seu redor. Sua tragédia não é fruto de decisões impulsivas, mas de um contexto social que a empurra para a passividade e a submissão.
Cassi Jones
Figura central do antagonismo, Cassi é um homem branco, pertencente à pequena burguesia urbana, que se aproveita de sua posição para seduzir mulheres inocentes. O personagem encarna a hipocrisia e a impunidade dos homens de sua classe, que transgridem normas morais sem sofrer as consequências que recairão sobre suas vítimas.
Sr. Joaquim dos Anjos e D. Engrácia
Pais de Clara, são figuras que representam a classe trabalhadora negra do subúrbio. Ambos são retratados com dignidade e resignação, conscientes de seu lugar na sociedade, mas impotentes diante das estruturas racistas e patriarcais que os cercam.
Temas centrais da obra
Racismo e exclusão social
O racismo não aparece apenas como preconceito direto, mas como estrutura silenciosa que delimita papéis sociais. Clara, por ser negra e pobre, é invisível para a elite e descartável para os homens brancos, que a desejam, mas não a respeitam.
Hipocrisia da classe média urbana
A obra escancara a hipocrisia da classe média carioca, que finge adotar valores morais rígidos, mas age de forma cínica e permissiva com os homens, enquanto pune severamente as mulheres. Cassi, por exemplo, é conhecido por seduzir e abandonar moças, mas é tratado com condescendência por seus pais e vizinhos.
Violência simbólica contra a mulher
Clara dos Anjos denuncia o modo como a sociedade da época — e ainda hoje, em muitos aspectos — culpabiliza a mulher por sua própria desgraça, enquanto protege os homens de qualquer responsabilização. Clara é seduzida e abandonada, e quem sofre as consequências sociais é ela, não Cassi.
Subúrbio x centro urbano
Lima Barreto faz questão de contrastar os dois espaços geográficos e sociais do Rio de Janeiro: o subúrbio, onde vivem os trabalhadores humildes e honestos, e o centro urbano, espaço do luxo, da ostentação e também da corrupção moral. Esse contraste também revela um embate de valores: solidariedade e simplicidade versus aparência e cinismo.
Estilo e linguagem
A linguagem do romance é simples, direta e coloquial, aproximando-se do falar popular dos subúrbios cariocas. Lima Barreto evita o vocabulário erudito e os floreios literários típicos dos autores da elite, como Machado de Assis, optando por um estilo mais acessível, com crítica social incisiva.
Um dos destaques do estilo do autor é o uso da ironia como instrumento de crítica. O narrador frequentemente comenta os acontecimentos com um tom sarcástico, desnudando o falso moralismo da sociedade e a conivência com o machismo e o racismo.
O lugar de Clara na literatura brasileira
Clara dos Anjos é uma das primeiras protagonistas negras da literatura brasileira a ser tratada com dignidade, profundidade psicológica e empatia. Lima Barreto foge do estereótipo da mulher negra como objeto sexual ou cômico, muito comum na literatura da época, e lhe confere uma humanidade sensível, silenciosa e trágica.
Ela é uma heroína trágica, não no sentido clássico do termo, mas por ser vítima de um sistema que nunca lhe ofereceu outra possibilidade senão a submissão. Seu destino está escrito não por suas escolhas, mas pelas estruturas que a oprimem.
Atualidade da obra
Mesmo tendo sido escrita há mais de um século, Clara dos Anjos permanece assustadoramente atual. A marginalização das mulheres negras, a conivência social com a violência de gênero, o racismo estrutural e a hipocrisia moral das classes médias continuam a fazer parte da realidade brasileira.
Em um contexto contemporâneo, em que se discute com mais intensidade o lugar da mulher e do negro na sociedade, a leitura dessa obra se torna ainda mais necessária — não apenas como documento histórico, mas como denúncia permanente de desigualdades que ainda persistem.
Conclusão
Clara dos Anjos é uma obra-prima silenciosa e amarga da literatura brasileira. Lima Barreto, com sua habitual sensibilidade social e estilo direto, constrói um retrato cruel de uma sociedade racista, machista e excludente. Ao dar voz a uma personagem como Clara, ele denuncia o silenciamento histórico das mulheres negras e revela os mecanismos perversos de uma sociedade marcada pela desigualdade.
Mais do que um romance sobre um caso de sedução e abandono, Clara dos Anjos é uma acusação social. E, talvez por isso, seja uma das obras mais importantes — e mais necessárias — da literatura brasileira do século XX.
Até mais!
Tête-à-Tête

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