No universo do teatro cômico, poucos nomes brilham com tanta força quanto o de Molière, pseudônimo de Jean-Baptiste Poquelin (1622–1673). Mestre da sátira social, da crítica moral e da caricatura de costumes, Molière construiu uma obra que atravessa os séculos com rara atualidade. Em Le Médecin malgré lui — traduzido no Brasil como “O Médico Relutante” ou “O Médico à Força” — o dramaturgo francês nos oferece um espetáculo hilariante que expõe com ironia os abusos da medicina e os ridículos sociais do século XVII.

Encenada pela primeira vez em 1666, a peça é uma comédia em três atos que gira em torno de uma farsa: um lenhador ignorante é forçado a se passar por médico, curando uma moça que, por sua vez, simula uma doença. É o jogo das aparências, das máscaras sociais e da lógica absurda da medicina de aparência, tudo isso envolvido por situações cômicas e diálogos afiados.


Resumo da trama

A história começa com Martine, esposa do lenhador Sganarelle, furiosa com o marido por causa de sua grosseria e preguiça. Como forma de vingança, Martine decide pregar-lhe uma peça: espalha para dois criados que Sganarelle é um médico excelente — mas que só assume sua identidade profissional se for espancado.

Os criados, Valère e Lucas, servem ao rico Géronte, cuja filha, Lucinda, subitamente ficou muda. Desesperado, Géronte quer um médico que possa curá-la. Os dois empregados encontram Sganarelle cortando lenha, e, seguindo o conselho de Martine, o espancam até que ele “confesse” ser um médico.

A partir daí, Sganarelle, sem ter ideia do que está fazendo, assume o papel de doutor. Com sua linguagem empolada e seu repertório improvisado de palavras em latim, consegue convencer a todos — inclusive a si mesmo — de que tem dons medicinais. O problema é que Lucinda, na verdade, finge estar muda para escapar de um casamento arranjado e poder ficar com seu verdadeiro amor, Léandre.

Léandre então se disfarça de auxiliar médico para se aproximar de Lucinda, e os dois tramam um plano para fugir juntos. Tudo se resolve de forma cômica quando a farsa de Sganarelle é desmascarada, mas ele acaba saindo ileso — e até recompensado — por seus “serviços”.


Sganarelle: o anti-herói cômico

Sganarelle é uma das figuras mais recorrentes nas peças de Molière, sempre representando o homem comum envolvido em situações absurdas. Em O Médico Relutante, ele encarna o tipo do charlatão involuntário, alguém que, sem qualquer saber, é transformado em autoridade por pura encenação.

Sua ignorância é evidente — ele confunde órgãos do corpo humano, inventa diagnósticos e prescreve tratamentos ridículos — mas ainda assim é acolhido como médico respeitável. Isso revela o quanto, no século XVII, a medicina era mais uma questão de aparência e retórica do que de ciência propriamente dita. O público da época, ciente das limitações e abusos da medicina oficial, ria com alívio diante da crítica ácida que a peça oferecia.


Temas centrais

Apesar de sua leveza e comicidade, “O Médico Relutante” é uma peça carregada de crítica social. Molière, como em outras obras (como O Doente Imaginário e Tartufo), utiliza o riso como forma de desmascaramento. Entre os principais temas abordados, destacam-se:

A falsa autoridade médica

Ao colocar um camponês como médico respeitado, Molière denuncia a fragilidade do conhecimento médico de seu tempo. O público percebe que qualquer um, com certo vocabulário técnico e postura altiva, podia se passar por especialista — uma sátira direta ao formalismo exagerado dos “doutores” do século XVII.

A ironia é ainda mais potente quando notamos que os verdadeiros médicos da época costumavam utilizar palavras em latim para impressionar os pacientes e esconder sua própria ignorância. Sganarelle faz exatamente isso — fala termos incompreensíveis, gesticula com solenidade e prescreve purgas, sangrias e lavagens que eram, de fato, práticas comuns naquele tempo.

A hipocrisia social

Lucinda finge estar muda para evitar um casamento arranjado — uma crítica direta à hipocrisia da moral burguesa. A mentira se torna uma ferramenta de liberdade. Já Sganarelle, ao fingir ser médico, é premiado em vez de punido. Molière nos mostra que a sociedade premia aparências e não a verdade.

A farsa é o modo dominante de relação entre os personagens. Todos, de algum modo, mentem, disfarçam, atuam. O mundo social é um palco — e todos são atores, mesmo que não saibam.

O papel da mulher

Martine, esposa de Sganarelle, é o ponto de partida da farsa. Ela toma iniciativa, engana os criados, manipula a situação. Lucinda, por sua vez, também subverte a ordem social ao fingir uma doença. Embora sejam personagens femininas em um contexto patriarcal, ambas exercem certo poder sobre os acontecimentos — ainda que, no fim, o mundo continue dominado pelas figuras masculinas.

Molière, com sua visão moderna e crítica, oferece a seus personagens femininos uma inteligência e uma força incomuns para a comédia da época.


Linguagem e comicidade

A comicidade de Molière é refinada. Em O Médico Relutante, ela se constrói por meio de:

  • Equívocos linguísticos: a linguagem médica, quando usada por Sganarelle, se torna ridícula. Ele mistura termos, inventa palavras e abusa de expressões pomposas. Isso satiriza a pretensão dos saberes técnicos.
  • Situações absurdas: um lenhador espancado para se tornar médico; uma moça que finge estar muda; um amante disfarçado de auxiliar — todos esses elementos criam um clima de exagero cômico que diverte e, ao mesmo tempo, critica.
  • Crítica disfarçada: Molière sabia que o riso é uma arma poderosa. Ao fazer o público rir das figuras de autoridade, especialmente os médicos e os pais autoritários, ele permite uma reflexão mais profunda sobre os mecanismos de poder.

Contexto histórico

No século XVII, a medicina era uma ciência em transformação, mas ainda marcada por práticas medievais e pela autoridade dogmática. Muitos médicos formavam-se apenas pelo estudo dos livros, sem prática clínica, e seguiam os preceitos de Galeno e Hipócrates quase como dogmas religiosos.

Além disso, era comum que o médico fosse visto como figura social de prestígio, independentemente de sua real eficácia. Essa distância entre saber e aparência é exatamente o que Molière satiriza.

Curiosamente, Molière teve problemas com os médicos de sua época por conta dessas críticas. Muitos o acusaram de difamar a profissão. Isso só confirma a atualidade de sua peça: quando a sátira toca o poder, este responde com censura.


Legado e relevância atual

Mesmo tendo sido escrita há mais de 350 anos, O Médico Relutante continua atual. Em um mundo onde o conhecimento técnico ainda é, por vezes, mais valorizado por sua roupagem do que por seu conteúdo, a peça de Molière nos alerta sobre o perigo das aparências e a fragilidade das instituições.

Além disso, ela permanece como uma obra-prima do teatro cômico, sendo frequentemente encenada em escolas, companhias de teatro amador e profissionais. Sua linguagem, apesar do contexto histórico, é acessível e encantadora, e suas situações, por mais absurdas, refletem aspectos universais da condição humana.

Em tempos de desinformação médica, charlatanismo digital e autoridade sem mérito, Molière permanece um autor profundamente necessário.


Conclusão

O Médico Relutante é muito mais do que uma comédia leve e divertida. É uma crítica perspicaz às estruturas de poder, ao formalismo vazio e às aparências que sustentam o saber social. Com sua ironia elegante e personagens inesquecíveis, Molière convida o espectador — e o leitor — a rir de si mesmo, a desconfiar das verdades impostas e a refletir sobre o teatro da vida cotidiana.

Ler ou assistir a esta peça é mergulhar no universo cômico e crítico de um dos maiores dramaturgos de todos os tempos — e sair dele mais atento, mais leve e, quem sabe, um pouco mais cético diante dos “doutores” de todas as áreas.


Até mais!

Tête-à-Tête