Publicado em 1989, A Sagração da Primavera de Modris Eksteins é uma obra notável que examina o século XX a partir de uma perspectiva cultural e histórica, conectando eventos e mudanças sociais a uma transformação profunda na visão de mundo ocidental. O livro toma como ponto de partida o famoso balé homônimo de Igor Stravinsky, cuja estreia em 1913, em Paris, provocou choque e controvérsia, simbolizando, para Eksteins, o início de uma nova era de convulsão e ruptura. O autor explora como essa ruptura cultural antecipou a Primeira Guerra Mundial e a forma como os valores modernos, tanto na arte quanto na sociedade, evoluíram ao longo do século.


A Metáfora da Sagração

Eksteins utiliza a estreia de A Sagração da Primavera como uma metáfora poderosa para o que ele descreve como a quebra das normas culturais e sociais que caracterizavam a civilização ocidental no início do século XX. O balé, com sua coreografia inovadora e sua música dissonante e pulsante, foi radical para os padrões da época. A reação ao espetáculo foi intensa: vaias, gritos e tumultos marcaram a primeira apresentação, algo raro no mundo da arte. Para o autor, essa reação visceral não foi apenas uma resposta à estética do balé, mas um sinal de uma mudança mais ampla nas mentalidades.

Eksteins argumenta que A Sagração da Primavera capturou o espírito de um mundo que estava à beira de uma transformação sísmica. A sociedade européia, naquele momento, enfrentava tensões crescentes: pressões nacionalistas, o declínio das antigas estruturas imperiais e uma crescente insatisfação com a moral vitoriana. A arte moderna, segundo ele, refletia e, ao mesmo tempo, fomentava essa insatisfação, questionando as noções de ordem, racionalidade e beleza que haviam dominado a cultura ocidental por séculos.


A Primeira Guerra Mundial e a Quebra Definitiva

A partir dessa análise inicial do balé de Stravinsky, Eksteins avança para discutir como a Primeira Guerra Mundial foi a culminação dessa tensão cultural. Ele afirma que o conflito de 1914-1918 não foi apenas uma guerra entre nações, mas um choque entre visões de mundo em transformação. De um lado, estava uma Europa que ainda tentava manter as convenções do passado; de outro, uma geração jovem, ansiosa por quebrar com essas tradições.

A guerra, segundo Eksteins, foi alimentada por uma busca por novidade, por uma rejeição das antigas normas de comportamento e por um desejo de viver de forma intensa e presente. Esse espírito é especialmente evidente nos soldados alemães, que ele descreve como fortemente imbuídos do idealismo romântico. Para eles, a guerra era uma forma de autoexpressão, uma maneira de superar a rigidez das convenções sociais e encontrar um novo significado para a vida. A guerra, em outras palavras, foi uma “sagração” da modernidade — um evento que destruiu o passado e abriu caminho para uma nova era.


O Papel da Alemanha e o Fascínio pela Morte

A Alemanha ocupa um lugar central na análise de Eksteins, não apenas como uma das protagonistas da Primeira Guerra Mundial, mas também como o país que melhor encarna o espírito moderno que ele descreve. Para Eksteins, a cultura alemã da virada do século XX era profundamente dualista: ao mesmo tempo que valorizava a ordem e a disciplina, também era atraída por ideias de desordem, destruição e transformação. Esse dualismo é exemplificado pela forma como os alemães abordaram a guerra — não apenas como um conflito militar, mas como uma espécie de renascimento espiritual.

Eksteins argumenta que a Alemanha foi o principal veículo dessa nova modernidade agressiva, um país que, ao mesmo tempo, rejeitava as convenções burguesas do Ocidente e procurava impor sua própria visão de um novo futuro. Ele traça paralelos entre o idealismo alemão e o surgimento do fascínio pela morte e destruição, que mais tarde seria capitalizado pelos movimentos fascistas e nazistas na Europa.


A Transformação Cultural no Pós-Guerra

Após a guerra, a Europa nunca mais foi a mesma. Eksteins descreve como a civilização ocidental passou por uma transformação profunda, movendo-se em direção a uma era de incertezas e fragmentação. O idealismo romântico que havia alimentado o entusiasmo inicial pela guerra foi substituído por uma desilusão cínica, que se manifestou tanto nas artes quanto na política.

O balé A Sagração da Primavera, nesse sentido, foi um prenúncio dessa nova ordem. A arte, que antes buscava a beleza e a harmonia, agora passou a explorar temas como o caos, o irracional e o grotesco. Artistas como Pablo Picasso e movimentos como o surrealismo e o dadaísmo exemplificam essa mudança. Na política, o sonho de uma nova ordem internacional desmoronou com o colapso da Liga das Nações e a ascensão de regimes autoritários na Europa.

Eksteins sugere que o espírito de modernidade que havia sido desencadeado no início do século XX continuou a moldar o resto do século, culminando em uma sociedade global cada vez mais fragmentada, onde os valores tradicionais foram questionados e, em muitos casos, destruídos.


Críticas ao Livro

Embora A Sagração da Primavera seja amplamente elogiado por sua análise perspicaz da cultura e história do século XX, alguns críticos apontam que Eksteins pode ter exagerado ao atribuir tanto significado a um único evento cultural. A ideia de que a estreia do balé de Stravinsky representou uma espécie de “início do fim” para a civilização ocidental é, para alguns, uma simplificação excessiva de um processo muito mais complexo.

Outros questionam a ênfase que Eksteins coloca na Alemanha como a principal força motriz da modernidade agressiva e destrutiva. Embora seja inegável que a Alemanha desempenhou um papel central na Primeira Guerra Mundial e nos eventos subsequentes, alguns críticos argumentam que o autor minimiza a importância de outras potências europeias e suas contribuições para a formação da modernidade.

Além disso, há a questão de se a análise de Eksteins realmente faz justiça à diversidade de experiências e respostas à modernidade. Sua narrativa muitas vezes sugere que a modernidade é inevitavelmente destrutiva e caótica, enquanto outros estudiosos podem argumentar que o século XX também trouxe inovações culturais e sociais positivas, que contribuíram para o progresso e a liberdade individual.


“A Sagração da Primavera” de Modris Eksteins é uma obra ambiciosa e provocadora que tenta conectar eventos culturais e históricos aparentemente desconexos em uma narrativa coesa sobre a ascensão da modernidade no século XX. Embora seu foco na estreia do balé de Stravinsky possa parecer uma escolha inusitada, Eksteins utiliza esse evento como uma lente para explorar as profundas transformações que moldaram a sociedade ocidental na virada do século e além.

Ao destacar a conexão entre a cultura e os grandes eventos históricos, como a Primeira Guerra Mundial, Eksteins nos lembra que a arte e a política estão inextricavelmente ligadas. Seu livro oferece uma perspectiva única sobre o século XX, mostrando como as tensões culturais e sociais do período se manifestaram tanto no campo de batalha quanto no palco.

Para quem busca compreender as origens da modernidade e suas implicações no mundo contemporâneo, A Sagração da Primavera é uma leitura essencial. Embora a visão de Eksteins sobre a modernidade seja sombria, seu trabalho nos oferece uma visão rica e multifacetada de um dos períodos mais turbulentos da história humana.


Até mais!

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