Lygia Fagundes Teles deve sua posição firme na literatura nacional principalmente aos seus contos. É preciso evitar as comparações meio erradas e meio falsas que falavam, pelo menos antigamente, de um “Maupassant brasileiro” ou de um “Gide brasileiro”, quando se tratava apenas de imitações fáceis. Mas não é este o caso. Lygia Fagundes Teles tem realmente algo da delicadeza atmosférica de uma Katherine Mansfield. A diferença é apenas a seguinte: ela também sabe escrever romance: e As meninas é mesmo um romance de alta categoria. Uma das suas obras anteriores desse gênero sai agora como edição de bolso, que só dá a data de 1975. Na verdade, Ciranda de pedra é de 1955, e a presente edição já é a 5ª, sucesso de livraria bastante raro e significativo em nosso ambiente culturalmente tão pobre, de modo que vale analisar ou reanalisar a obra de escritora tão séria.

O romance tem duas partes. A primeira parte trata da meninice de Virgínia, cuja mãe, Laura, tendo abandonado seu marido, o jurista Natércio, e vivendo com a menina em casa do médico Daniel, sofre de grave doença mental. Piora tanto que Virgínia tem de mudar-se para a casa do pai e para a companhia de suas irmãs mais velhas. Pouco depois, Laura morre e Daniel suicida-se. É então que se revela à Virgínia, menina de uns oito ou 10 anos, a verdade brutal do passado: Daniel não era o “tio”, como ela sempre acreditava, mas seu verdadeiro pai; e é por isso que a criança não ficou com Natércio.

Conforme este resumo, a primeira parte de Ciranda de pedra parece bastante melodramática. Mas não acontece isso. Responsável pelo encanto dessas páginas é, antes de tudo, o estilo de Lygia Fagundes Teles, escritora que parece mais preocupada com as possibilidades do que com as impossibilidades da língua. Em uma linha, em poucas palavras, sabe ela sugerir a atmosfera: as venezianas fechadas e a luz acesa no quarto de dormir da doente, e o sol lá fora.

É este o ambiente em que se passa a meninice de Virgínia, que ainda não sabe nada das pequenas tragédias e das grandes misérias da vida. Suas preocupações são as de todas as crianças de sua idade: considera-se feia; sente ciúmes das irmãs mais velhas; e adora Conrado, um rapaz fino e algo tímido que lhe aparece nos sonhos como príncipe que a levará para fora desse ambiente de venezianas fechadas e luzes acesas. E, então, as outras vão sentir inveja. Não se diria que este é o mundo visto pelos olhos de uma criança. Antes é o mundo assim como se reflete nos olhos da menina. Todos os elementos psicológicos, nesta primeira parte do romance, são delineados com estrema delicadeza e empatia. Para definir o estilo narrativo de Lygia Fagundes Teles, peço licença para citar uma classificação do meu amigo Alfredo Bosi, em sua admirável História concisa da literatura brasileiraCiranda de pedra é um romance de consciência subjetiva em face de um conflito que continua interiorizado: está contado na 3.ª pessoa, mas também o poderia ser na 1.ª. A vida continuará sem solução desse conflito. E essa não-decisão é o tema da segunda parte do romance, que em cada página ameaça transformar-se em tragédia e que, no entanto, termina sem (ou talvez antes da) catástrofe.

No colégio interno de freiras, Virgínia, já tão duramente provada por aquelas revelações, perde a fé e a confiança nos outros (se não fosse a lembrança de Conrado…). Voltar para casa — que agora sabe não ser casa sua — não significa sair do seu isolamento. Não é possível entender-se com o homem que não é seu pai: Virgínia sente-se sozinha entre os que foram seus camaradas de infância. Conrado continua tímido e mudo. Os outros já têm seu trabalho, ou ainda, cada um seu hobby, já casaram ou vão casar-se em breve, bebem muito e estão desmoralizados. Há, entre eles, uma verdadeira ciranda de adultérios e paixões efêmeras, em que Virgínia, querendo ou não querendo, também é envolvida. Para sair desse círculo infernal só haveria uma saída: o amor de Conrado. Mas este continua mudo, até que, certo dia, a verdade se revela com aquela mesma brutalidade que destruiu a infância de Virgínia: Conrado nunca se casará com ela porque não pode amá-la, porque é um impotente. Que pode ela ainda esperar? A catástrofe parece bater à porta. Mas não é assim que termina Ciranda de pedra, que não é um melodrama barato. Virgínia vai viajar, para longe, sem um fim definido, assim como convém que termine esse conflito interiorizado. Tudo fica incerto. Certo só é que ela não voltará nunca.

A primeira parte de Ciranda de pedra foi um estudo psicológico. O sentido da segunda parte também é claro: todos estão desmoralizados, e o único decente é impotente. É a decadência moral da família paulista. É um fato duro, tema para um romance realista, que poderia ser um frio diagnóstico clínico ou um panfleto tendencioso. Mas Ciranda de pedra não é um romance realista, embora todos os fatos sejam apresentados com clareza impiedosa. É uma elegia nostálgica, sem retórica, uma elegia em meios-tons e penumbras, uma elegia em forma de romance psicológico.

1ª ed. 1955 (capa de Santa Rosa)


Otto Maria Carpeaux, ‘Uma quase inocente depravação há 20 anos’, Livro [suplemento], Jornal do Brasil, 30 mai. 1976, p. 7.


Até mais!

Equipe Tête-à-Tête