Otto Maria Carpeaux | Livro , 1976
Insônia , de Graciliano Ramos, Record-Martins, 12ª ed., capa de Floriano Teixeira, Rio, 1976, 175 pp., Cr$ 32,00.
Quanto a Graciliano Ramos, sinto-me incapaz de guardar a imparcialidade que se pode exigir de um artigo de crítica literária. Além de admirar a arte do grande escritor, ligou-me a ele uma profunda e permanente amizade pessoal, baseada no paralelismo das nossas convicções literárias e outras e certas referências dos nossos temperamentos. No círculo de escritores e jornalistas que costumavam se reunir, todas as tardes, na antiga livraria , Jorge de Lima, Marques Rebelo e tantos outros — Graciliano tinha, assim como eu, fama de pessimista, e em torno desta nossa comunidade de expectativas chegaram a surgir lendas de que hoje não sei mais se sentiram em fatos verdadeiros: certa vez, na Rua do Ouvidor,
Devo ao próprio Graciliano a informação preciosa de que o enredo de Angústia não se passa na cidade do Nordeste, mas no Rio de Janeiro dos anos de 1920
Esse “pessimismo” era, no caso de Graciliano e no meu, fruto de experiências de vida das mais amargas; quer dizer, refere-se muito mais ao passado do que ao futuro. Em todo caso, esse chamado pessimismo não excluiu a esperança de um dia melhor, esperança que foi também o motivo do extremo cuidado com que Graciliano elaborou tudo o que ele escreveu: seus romances são dos mais bem seguros da literatura nacional e não é necessário falar do seu estilo, essa estranha combinação de classicismo e coloquialismo.
Em respeito à arte de Graciliano não houve nem há discussão. Estão todos de acordo. As opiniões só estão divididas quanto à preferência que merece ser ou aquele ou aquele outro dos três grandes romances desse mestre singular.
Só três? Peço licença para dizer que Caetés é obra indispensável do chamado ciclo nordestino, embora sabendo que essa opinião está condenada a ficar voto vencido. A maioria dos leitores críticos prefere São Bernardo , porque nenhuma outra obra sua é tão “típica”. Os gracilianistas por assim dizer ortodoxos talvez prefiram Vidas secas , que é mais que romance nordestino, antes é o romance da vida nordestina. Muito bem. Mas, com certeza, considero Angústia como uma das maiores obras da literatura brasileira e um dos grandes romances da literatura universal. Devo ao próprio Graciliano a informação preciosa de que o enredo de Angústia não se passa na cidade do Nordeste, mas no Rio de Janeiro dos anos de 1920, quando o futuro escritor procurava em vão a conquista de uma posição literária na Capital, voltando decepcionado para sua província. Todos os romances de Graciliano têm, até certo ponto, fundo autobiográfico.
Nesse sentido também são romances como obras propriamente autobiográficas, Infância e Memórias do cárcere , que são as mais amargas e, caracteristicamente, escritas com a maior serenidade. Explicam, ao mesmo tempo, o pessimismo e a esperança de Graciliano Ramos.
Com essas grandes obras não se compara o volume de contos Insônia , que sai agora em nova edição. É um trabalho muito mais modesto, mas nada desprezível.
Já o mero título, Insônia , é um achado: caracteriza bem a atitude de Graciliano em face da vida, diurna e noturna. Nenhum outro teria escrito esses contos e ninguém os teria escrito assim como ele. Neles, assim como em todas as outras obras do escritor, é inconfundível sua voz amargurada com o travo das cinzas da ironia na boca. Insônia pode ser de peso menor que as grandes obras, mas cada uma das linhas que Graciliano escreveu é importante; importante para o conhecimento e a compreensão do escritor e do homem. Não somente é preciso lê-las. É necessário estudá-las.
Já possuímos alguns livros (e estudos monográficos) muito bons sobre o estilo de Graciliano e sobre a estrutura dos seus romances: de Rolando Morel Pinto, do alemão Helmut Feldmann, de Rui Ramos, de Miécio Tati, de Luiz Costa Lima, do norte- americano Benjamin Woodbridge, e um esboço biográfico, devido a Francisco de Assis Barbosa. Falta uma grande obra completa, definitiva. Por que faltaria? Somos, todos nós, admiradores de Graciliano. Mas será que ele foi, pelo Brasil, devidamente apreciado?
O fracasso da primeira tentativa de uma carreira literária se compreende (o próprio Graciliano me confessou ter escrito, então, sonetos parnasianos). Os tardios e surpreendentes sucessos dos primeiros romances foram interrompidos pelo episódio que todos sabem. Mas depois? Não faltava o apoio de opinião pública, que se manifestava pela concessão do Prêmio Felipe de Oliveira. Só fica na marca dos contemporâneos o jantar oferecido a Graciliano pelos intelectuais brasileiros em 25 de outubro de 1942, jantar presidido pelo então Ministro da Educação e Cultura, Gustavo Capanema; um homem de cultura. Foi o único vestígio de reconhecimento oficial, nenhum outro. Como Piron, Graciliano poderia dizer que II ne fut rien — pas même academicien . A quem quiser hoje saber da vida de Graciliano Ramos, só resta ler as Memórias do cárcere .
Depois, morreu uma morte dura. Não se precisava da presente edição de Insônia para saber que Graciliano continua inesquecido. Mas há em torno de sua obra uma aparência — uma aparência, digo — de irrealidade ou inatualidade, cujo único motivo é este: ela seria impossível hoje em dia. Sua insônia tornou-se nossa insônia. Foi ele pessimista? Sim, pessimista com uma grande esperança que também é nossa esperança.
Carpeaux, Otto Maria. ‘Graciliano: insônia e esperança’. Livro, Jornal do Brasil , 29 ago. 1976, pág. 7.
Até mais!
Equipe Tête-à-Tête

25 de junho de 2023 at 14:24
Ilustre romancista… Fraterno abraço.
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