A obra inacabada de Walter Benjamin, conhecida como Paris, Capital do Século XIX ou simplesmente Passagens (Das Passagen-Werk), ocupa um lugar singular na história do pensamento moderno. Escrita de forma fragmentária entre 1935 e 1940, e interrompida pela morte trágica do autor, a obra não é um livro convencional, mas um vasto arquivo filosófico, histórico e literário dedicado à compreensão da modernidade a partir da experiência urbana parisiense do século XIX.
Mais do que uma história de Paris, Benjamin constrói uma crítica radical da modernidade capitalista, utilizando a cidade como laboratório simbólico do mundo moderno.
Projeto e forma
Passagens é uma obra deliberadamente inacabada e não linear. Benjamin rejeita a exposição sistemática em favor do método da montagem: citações, notas, aforismos, comentários históricos e reflexões filosóficas justapõem-se sem a mediação de uma narrativa contínua.
Essa forma fragmentária não é um defeito, mas parte essencial do projeto. Benjamin acreditava que a verdade histórica não se revela por meio de sistemas fechados, mas no choque entre fragmentos. O leitor é convidado a percorrer o texto como quem caminha por uma galeria — uma passage — onde objetos, imagens e ideias se encontram de maneira inesperada.
Paris como símbolo da modernidade
Paris surge na obra como a capital simbólica do século XIX, o espaço onde se cristalizam as transformações econômicas, sociais e culturais do capitalismo industrial. As passagens cobertas — galerias comerciais feitas de ferro e vidro — tornam-se o emblema dessa nova era.
Nelas, Benjamin identifica:
- o nascimento do consumo moderno;
- a mercantilização da experiência cotidiana;
- a emergência do flâneur, o observador errante da cidade;
- o domínio da mercadoria como forma cultural.
As passagens representam uma arquitetura do desejo, onde o progresso técnico se mistura à ilusão e ao fetichismo.
Capitalismo, mercadoria e mito
Inspirado por Marx, Benjamin analisa o capitalismo não apenas como sistema econômico, mas como estrutura mítica. A mercadoria, longe de ser um simples objeto, assume caráter quase religioso, prometendo felicidade, progresso e redenção.
Benjamin mostra como a modernidade transforma o novo em um valor absoluto, condenando o presente à obsolescência permanente. O progresso deixa de ser emancipação e torna-se repetição, uma marcha contínua sobre os escombros do passado.
Essa crítica atinge também as utopias do século XIX, que, segundo Benjamin, acabaram absorvidas pela lógica do capital.
O flâneur e a experiência urbana
Uma das figuras centrais de Passagens é o flâneur, personagem inspirado em Baudelaire. Ele encarna a experiência moderna da cidade: alguém que observa sem participar plenamente, que percorre as ruas como um leitor percorre um texto.
O flâneur é ao mesmo tempo crítico e cúmplice do capitalismo. Sua liberdade aparente oculta uma forma sutil de alienação, pois sua contemplação ocorre no interior do mundo das mercadorias.
Tempo, história e despertar
No núcleo filosófico da obra está a concepção benjaminiana da história. Para ele, o passado não é uma sequência linear de fatos, mas um conjunto de imagens adormecidas que podem ser despertadas no presente.
Benjamin propõe uma história construída a partir dos vencidos, dos esquecidos, dos resíduos da modernidade. O historiador, nesse sentido, não narra o progresso, mas interrompe seu curso, revelando as fissuras do tempo histórico.
Inacabamento e legado
O caráter inacabado de Passagens reforça seu sentido profundo: a modernidade é, ela própria, um projeto inconcluso e contraditório. A obra influenciou decisivamente áreas como filosofia, sociologia, história cultural, estudos urbanos e crítica literária.
Mesmo sem uma forma definitiva, Paris, Capital do Século XIX permanece como um dos diagnósticos mais penetrantes da experiência moderna, desafiando o leitor a pensar a história não como evolução contínua, mas como campo de tensões, ruínas e possibilidades interrompidas.
Conclusão
Passagens é menos um livro para ser “lido” do que habitado. Walter Benjamin oferece uma cartografia intelectual da modernidade, onde Paris aparece como espelho do capitalismo, do consumo e do mito do progresso. Inacabada por circunstância histórica, a obra permanece aberta por vocação filosófica, convidando cada geração a reencontrar, nos fragmentos do passado, os sinais de seu próprio tempo.
Até mais!
Tête-à-Tête

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