A relação entre protestantismo e capitalismo tem sido objeto de intensos debates desde o início do século XX. No centro dessa discussão encontra-se a ideia de redenção intramundana: a noção de que a salvação e a vocação do indivíduo se manifestam não apenas no além, mas no interior da vida cotidiana, por meio do trabalho, da disciplina e da conduta moral no mundo. Essa concepção, particularmente desenvolvida em certos ramos do protestantismo, exerceu influência decisiva na formação do ethos capitalista moderno.


Redenção intramundana: conceito geral

Por “redenção intramundana” entende-se uma visão religiosa segundo a qual o sentido espiritual da vida não se realiza prioritariamente na fuga do mundo, mas na transformação ética da existência terrena. O mundo deixa de ser apenas um vale de provações rumo à salvação futura e passa a ser o espaço onde a fé se comprova concretamente.

No cristianismo medieval, especialmente no catolicismo, a perfeição espiritual estava fortemente associada à vida monástica, à contemplação e à renúncia dos bens materiais. O protestantismo, sobretudo em suas vertentes reformadas, promoveu uma inflexão decisiva: a santidade não se restringe ao claustro, mas se expressa no cumprimento rigoroso dos deveres cotidianos.


A vocação (Beruf) no protestantismo

Martinho Lutero foi um dos primeiros a redefinir o conceito de vocação (Beruf). Para ele, toda profissão lícita poderia ser um chamado divino. O trabalho comum — do artesão ao comerciante — adquiria dignidade espiritual.

No entanto, foi no calvinismo que essa ideia assumiu maior radicalidade. A doutrina da predestinação, segundo a qual a salvação não depende das obras humanas, gerou uma tensão psicológica profunda: como saber se alguém estava entre os eleitos? A resposta prática foi a busca por sinais externos de eleição, manifestados em uma vida moralmente disciplinada, produtiva e ordenada.

Assim, o sucesso no trabalho, a racionalidade econômica e a conduta austera passaram a ser interpretados como possíveis indícios da graça divina.


Ascetismo intramundano e disciplina racional

Diferentemente do ascetismo monástico, o protestantismo reformado desenvolveu um ascetismo intramundano. O fiel não se retirava do mundo, mas submetia sua vida cotidiana a regras rígidas de comportamento.

Esse ascetismo valorizava:

  • o trabalho contínuo e metódico;
  • a rejeição do ócio improdutivo;
  • a frugalidade e o autocontrole;
  • a reinversão dos lucros, em vez do consumo ostensivo.

Essa ética produziu um tipo humano disciplinado, previsível e orientado por cálculos racionais — exatamente o perfil exigido pelo capitalismo moderno em sua fase de consolidação.


A contribuição para o espírito do capitalismo

Max Weber, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, argumentou que o capitalismo moderno não surgiu apenas de fatores econômicos ou técnicos, mas também de uma disposição moral específica. O protestantismo ascético forneceu essa disposição.

A busca sistemática do lucro, quando associada à responsabilidade moral e à disciplina pessoal, deixou de ser vista como ganância e passou a ser interpretada como dever. O enriquecimento não era condenado, desde que acompanhado de sobriedade e responsabilidade.

Nesse sentido, a redenção intramundana deslocou o eixo da salvação: o fiel glorificava a Deus organizando racionalmente o mundo, produzindo riqueza, respeitando contratos e mantendo autocontrole ético.


Secularização da ética protestante

Com o tempo, os fundamentos teológicos dessa ética foram sendo progressivamente esquecidos, mas seus hábitos permaneceram. O ascetismo religioso transformou-se em racionalidade econômica secular.

O que antes era motivado pela glória de Deus passou a ser justificado pela eficiência, pelo progresso e pelo crescimento econômico. Weber chamou esse processo de “desencantamento do mundo”: a ética religiosa deu origem a uma ordem econômica autônoma, que continuou a funcionar mesmo após o enfraquecimento da fé.

Assim, a redenção intramundana contribuiu para a criação de estruturas econômicas e culturais que já não dependiam explicitamente da religião que lhes deu origem.


Limites e críticas

É importante notar que o protestantismo não “criou” o capitalismo sozinho. Mercados, bancos e práticas comerciais já existiam antes da Reforma. Além disso, formas de capitalismo floresceram em contextos não protestantes.

A contribuição do protestantismo foi sobretudo cultural e moral: forneceu uma legitimação ética para a racionalização econômica e para a valorização do trabalho sistemático.

Autores posteriores, como Werner Sombart e Karl Polanyi, ampliaram e criticaram a tese de Weber, mas reconheceram a importância da dimensão religiosa na formação da modernidade econômica.


Conclusão

A ideia de redenção intramundana no protestantismo representou uma ruptura decisiva com a espiritualidade medieval. Ao transformar o trabalho, a disciplina e a racionalidade econômica em expressões de fé, o protestantismo ascético contribuiu para a formação do ethos capitalista moderno.

Mesmo secularizada, essa herança permanece visível nas sociedades contemporâneas, onde o valor do trabalho, da eficiência e da produtividade continua a ocupar um lugar central. Compreender essa genealogia é essencial para entender não apenas o capitalismo, mas também a própria configuração moral do mundo moderno.


Até mais!

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