Publicado em 1975, Lavoura Arcaica é uma das obras literárias mais intensas, poéticas e perturbadoras da literatura brasileira contemporânea. Com apenas dois romances publicados, Raduan Nassar tornou-se um autor de referência justamente pela força estilística e pela profundidade psicológica dessa narrativa, que combina lirismo, drama familiar e tensão existencial de modo singular. Lavoura Arcaica não é apenas um romance; é uma experiência sensorial e espiritual, marcada pelo embate entre tradição e desejo, entre ordem e rebeldia, entre casa e errância.

A história é narrada em primeira pessoa por André, o filho rebelde de uma família patriarcal de origem camponesa, profundamente marcada por valores religiosos e moral rígida. O romance se constrói sob o signo da ruptura: André fugiu de casa e se encontra em um quarto de pensão, onde o irmão mais velho, Pedro, o visita para convencer-lhe a voltar. Esse reencontro funciona como gatilho para uma torrente de memórias, ressentimentos, desejos culpados e reflexões densas, que compõem a espinha dorsal da narrativa.

A estrutura do livro é dividida em duas partes: “A Partida” e “O Retorno”. Na primeira, André revisita a infância, a adolescência e a relação complexa com a família — especialmente com o pai, um patriarca austero que representa a tradição, a autoridade e a palavra bíblica. O estilo de Nassar nessa parte é marcadamente poético, carregado de imagens de forte sensualidade e simbolismo. O narrador descreve as cenas da vida rural com uma mistura de encanto e sufocamento: a fartura da mesa, o ritmo da lavoura, os rituais cotidianos e o peso das expectativas familiares. Tudo é vivido com intensidade quase mística e, ao mesmo tempo, com uma sensação constante de opressão.

A grande tensão do romance, porém, nasce da relação de André com a irmã Ana. A paixão incestuosa entre os dois é apresentada não como escândalo gratuito, mas como metáfora da força do desejo que rompe normas, abala estruturas e desafia a ordem tradicional. O incesto, aqui, opera como símbolo máximo da insubmissão e da ruptura com a lógica da comunidade. A linguagem exuberante e sensorial de Nassar torna essa relação ao mesmo tempo bela e devastadora, sempre permeada de culpa, vergonha e fascínio.

A figura do pai é central. Ele é o guardião de uma moralidade arcaica, quase bíblica, marcada por sermões, parábolas e apelos à disciplina. Em seus discursos, ecoam valores de obediência, trabalho e sacrifício. Para André, porém, essa palavra paterna torna-se sufocante, um peso que o afasta da família e o lança na errância. A narrativa, assim, constrói um embate entre a palavra da lei (representada pelo pai) e a palavra do desejo (representada por André). Esse conflito dá ao romance sua dimensão trágica.

Na segunda parte, “O Retorno”, André volta para casa — e o ambiente familiar, antes idealizado e lembrado com nostalgia ambígua, revela-se ainda mais tenso e fraturado. O retorno não pacifica nada; ao contrário, intensifica a sensação de desajuste entre o protagonista e o universo moral do qual ele tenta escapar. O desfecho, violento e abrupto, coroa o caráter trágico da narrativa: a harmonia aparente da família implode, revelando a impossibilidade de conciliar desejo e tradição.

O estilo de Raduan Nassar é um dos grandes atrativos da obra. Sua prosa é profundamente musical, ritmada, carregada de metáforas e cadência bíblica. A influência dos textos sagrados, da oralidade rural e da poesia moderna se combina em um discurso que parece sempre prestes a transbordar. A escrita é ao mesmo tempo sensorial e abstrata, corporal e metafísica — algo raro e extremamente potente na literatura brasileira. Cada frase parece carregada de tensão emocional, como se o texto todo estivesse no limite da explosão.

Tematicamente, Lavoura Arcaica aborda questões universais: a opressão familiar, a força da tradição, o conflito entre individualidade e coletividade, a transcendência do desejo e o drama da culpa. Mas também dialoga diretamente com elementos da cultura brasileira: a ruralidade, o patriarcalismo, os rituais familiares e a religiosidade.

Lavoura Arcaica permanece, ainda hoje, um dos romances mais marcantes e radicais do século XX no Brasil. Sua prosa densa e incendiária exige do leitor entrega plena. É uma obra que perturba, seduz e desafia; que expõe o drama de uma alma dividida e de uma família dilacerada por forças que não podem ser controladas. Raduan Nassar cria, nesse livro, um universo simbólico poderoso, onde cada gesto e cada palavra ecoam muito além da narrativa — tocando as regiões mais profundas do humano.


Até mais!

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