Publicado em 1895, Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, é uma das obras mais ousadas, complexas e controversas do Naturalismo brasileiro. Inserido no contexto de uma literatura que buscava desnudar a sociedade através de determinismos biológicos, crítica social e temas “incômodos”, o romance tornou-se célebre — e por muito tempo também silenciado — por abordar abertamente uma relação homoafetiva entre dois marinheiros, num período em que tais assuntos eram considerados tabu absoluto. Ao mesmo tempo, o livro oferece um retrato tenso, sombrio e profundamente humano das contradições do Brasil pós-escravidão.

O protagonista, Amaro, conhecido como “Bom-Crioulo”, é um ex-escravizado que encontra na Marinha uma forma de pertencimento e de ascensão possível dentro de um país recém-aberto à liberdade formal, mas ainda marcado pelo racismo estrutural. Forte, disciplinado e admirado pela corporação, Amaro representa uma figura trágica que busca, acima de tudo, afeto e reconhecimento. Sua relação com o jovem marinheiro Aleixo desencadeia a trajetória emocional do romance: uma história de paixão intensa, ciúmes, impulsividade e degradação — típica da ênfase naturalista nas forças irracionais que movem a condição humana.

Adolfo Caminha constrói o enredo sob a ótica determinista da escola naturalista: os personagens são apresentados como seres submetidos a impulsos, ambientes hostis e condicionamentos sociais que agem como forças inevitáveis. Nesse sentido, o romance se aproxima de O Cortiço, de Aluísio Azevedo, embora Caminha vá além ao explorar não apenas a influência do meio, mas também a marginalização racial e sexual em um país que tentava definir a própria identidade após a Abolição de 1888. A paixão de Amaro por Aleixo é retratada com ambiguidade: ao mesmo tempo em que revela ternura e desejo de proteção, também expõe um lado possessivo e descontrolado, sugerindo o conflito permanente entre vontade e instinto — marca típica do Naturalismo.

Ao situar boa parte da narrativa no ambiente fechado dos navios e dos cortiços da capital, Caminha utiliza a Marinha como microcosmo social. É um espaço regido pela disciplina rígida, pela violência, pelo alcoolismo e pela competição viril, onde relações de poder e humilhação moldam identidades. Nesse ambiente, a relação entre Amaro e Aleixo se torna ainda mais fragilizada, tornada clandestina pela moral vigente. Aleixo, frágil e influenciável, funciona como contraponto ao protagonista: representa a juventude ainda em formação, sujeita às tentações e à pressão social, incapaz de sustentar o vínculo afetivo que Amaro idealizara.

O romance também se destaca por romper com convenções literárias e morais de sua época. A homoafetividade é tratada com franqueza incomum, sem caricaturas fáceis, ainda que permeada por tons de tragicidade e estigmas típicos do final do século XIX. Ao mesmo tempo, Caminha incorpora críticas duras ao racismo, à desigualdade social e ao moralismo hipócrita, revelando, nas entrelinhas, a fragilidade das instituições e das normas sociais impostas à população negra e pobre.

A narrativa caminha para um desfecho sombrio, marcado pela deterioração psicológica do protagonista e pelo choque entre desejo e realidade. O final trágico, que envolve violência e ruptura definitiva, reforça a perspectiva naturalista: o indivíduo sucumbe às forças que não pode controlar, seja a pressão do meio, seja a própria desordem interior. Ainda assim, há no texto uma dimensão humana profunda: Caminha parece compreender o sofrimento de seus personagens, suas carências e a precariedade de suas possibilidades existenciais.

Estilisticamente, Bom-Crioulo apresenta uma linguagem direta, crua e incisiva, característica da literatura naturalista. A descrição minuciosa de ambientes degradados, dos hábitos cotidianos e das tensões físicas e emocionais dá ao romance um tom quase documental. Caminha, porém, vai além do mero registro: ele combina a objetividade da escola naturalista com momentos de grande força emotiva, especialmente nas cenas que revelam a vulnerabilidade de Amaro.

Ao longo das décadas, Bom-Crioulo foi reinterpretado, redescoberto e valorizado como marco pioneiro da literatura homoafetiva em língua portuguesa e como obra indispensável para compreender o Brasil do final do século XIX. Também despertou debates sobre racismo, sexualidade, disciplina militar, exclusão social e violência simbólica — questões que permanecem atuais.

Hoje, o romance é reconhecido tanto por seu valor literário quanto por sua importância histórica. Bom-Crioulo desafia as convenções da época, expõe feridas abertas da sociedade brasileira e oferece um retrato intenso do desejo, da solidão e do desamparo humano. Mesmo inserido no determinismo naturalista, o livro de Adolfo Caminha ultrapassa seu tempo ao iluminar temas que ainda demandam reflexão e sensibilidade.


Até mais!

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