“Auto da Compadecida”, escrito por Ariano Suassuna em 1955, é uma das obras mais populares e representativas da literatura dramática brasileira. Misturando comédia, religiosidade, crítica social e elementos da tradição popular nordestina, a peça se tornou um marco da cultura nacional, sendo adaptada inúmeras vezes para o teatro, cinema e televisão. Seu encanto reside na habilidade de Suassuna em unir humor irreverente e profundo humanismo, oferecendo ao público uma reflexão leve, mas contundente, sobre a condição humana.
A história é ambientada no sertão nordestino e gira em torno de João Grilo e Chicó, dois anti-heróis clássicos da cultura popular. João Grilo, astuto e pobre, é o verdadeiro motor da narrativa: engenhoso, mentiroso quando necessário e movido pelo desejo de sobreviver em um ambiente hostil. Chicó, seu inseparável companheiro, é medroso e exagerado, sempre pronto a contar histórias impossíveis que começam com: “Não sei, só sei que foi assim.” A dupla expressa, com humor, a esperteza e a imaginação com que o povo simples enfrenta a dureza do sertão.
A trama se desenvolve a partir de pequenos episódios — típicos do teatro de cordel — que envolvem figuras estereotipadas como o padeiro avarento, o major valentão, o padre ganancioso, o sacristão bajulador e a mulher do padeiro, símbolo de sensualidade e esperteza. João Grilo manipula todos eles, sempre com malícia cômica, até que um evento trágico — a invasão do cangaceiro Severino — desencadeia o momento mais marcante da obra: o julgamento das almas.
É nesse ponto que Suassuna revela sua profunda ligação com a religiosidade popular. O julgamento reúne personagens diante de Cristo — representado por Manuel, figura próxima do povo — e da Compadecida, Nossa Senhora, cuja intervenção misericordiosa é fundamental. A cena, ao mesmo tempo hilariante e comovente, contrapõe a justiça rígida e impiedosa ao olhar compassivo da mãe que compreende as fraquezas humanas. João Grilo, mais uma vez, tenta escapar de seus pecados com sua esperteza, mas é apenas pela compaixão da Virgem que ganha nova chance.
O grande mérito da peça é equilibrar leveza e crítica social. Por meio do riso, Suassuna expõe contradições do Brasil profundo — o clericalismo interesseiro, a violência dos coronéis, a desigualdade extrema, a fome e a busca desesperada pela sobrevivência. Contudo, ao contrário de uma denúncia amarga, o autor opta por um humanismo generoso, onde mesmo os personagens moralmente falhos merecem compreensão. A misericórdia prevalece sobre o rigor, aproximando-se do ethos cristão que permeia toda a obra de Suassuna.
Em termos estéticos, “Auto da Compadecida” dialoga com o teatro medieval dos autos sacramentais, com a literatura de cordel e com a cultura oral do Nordeste. O texto é marcado por ritmo ágil, diálogos cômicos, situações farsescas e um vocabulário popular que confere autenticidade e sabor regional. João Grilo e Chicó tornaram-se arquétipos brasileiros, personificações da astúcia e da resistência diante da adversidade.
No conjunto, a peça é uma celebração da criatividade popular e da capacidade humana de sorrir, mesmo diante das maiores dificuldades. Suassuna eleva o sertão ao universal: seu humor não é apenas regional, mas profundamente humano. “Auto da Compadecida” permanece atual porque revela, com graça e sensibilidade, a luta pela sobrevivência, o desejo de justiça e a busca por compaixão que todos carregamos. É uma obra que diverte, emociona e ensina — um clássico incontornável da literatura brasileira.
Até mais!
Tête-à-Tête

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