Sobre o Conceito de História — também conhecido como Teses sobre o Conceito de História — é um dos textos mais enigmáticos, densos e influentes do filósofo Walter Benjamin. Escrito em 1940, pouco antes de sua morte, o ensaio constitui uma reflexão radical sobre a história, o tempo, a memória e a política, surgida em um dos momentos mais sombrios da Europa: o avanço do nazismo e o colapso das democracias ocidentais.
Publicada postumamente e presente em diversas edições críticas, a obra condensa, em breves teses numeradas, uma crítica devastadora à ideia tradicional de progresso histórico. Ao mesmo tempo, oferece uma alternativa messiânica, dialética e profundamente ética para pensar o passado e o papel do historiador. Trata-se de um texto que combina filosofia, política, literatura e teologia, e que exige do leitor atenção e abertura para múltiplas camadas de sentido.
Um texto fragmentário, mas rigoroso
As Teses são formadas por fragmentos curtos — afirmações, parábolas, imagens e aforismos — que não se articulam como um tratado sistemático. Essa forma fragmentária, porém, não é acidental: Benjamin acreditava que o pensamento verdadeiro se manifesta como um “estalo”, uma interrupção da linearidade. A estrutura fragmentária expressa, portanto, a própria crítica que o autor pretende fazer: a crítica ao tempo homogêneo, contínuo e progressivo adotado pela historiografia tradicional.
Cada tese funciona como uma explosão conceitual. Benjamin reúne metáforas poéticas, referências teológicas judaicas, ecos do marxismo e intuições messiânicas para confrontar a cultura europeia que, segundo ele, fracassara em impedir o avanço do fascismo.
A crítica ao “historicismo” e ao mito do progresso
Uma das teses centrais do texto é o ataque ao historicismo, que Benjamin define como a visão dominante de sua época — uma concepção da história como linha contínua, acumulativa e neutra. Para o historicismo, o passado deve ser contemplado “como ele realmente foi”, sem interrupções ou juízos; o progresso técnico e material seria um movimento natural da humanidade.
Benjamin denuncia essa visão como cúmplice dos poderosos. Ela naturaliza as vitórias dos vencedores e transforma conquistas violentas em marcos inevitáveis do avanço humano.
A famosa imagem do “Anjo da História”, inspirada no quadro Angelus Novus de Klee, sintetiza a crítica. O anjo olha para o passado e vê ruínas, desastres e sofrimentos acumulados. Ele gostaria de “despertar os mortos e recompor o destruído”, mas uma tempestade — chamada por Benjamin de “progresso” — o empurra para o futuro, obrigando-o a contemplar a catástrofe que cresce.
Essa imagem desmascara a ideia de progresso como narrativa triunfal. Para Benjamin, o progresso técnico não impediu guerras, massacres ou opressões; pelo contrário, muitas vezes os ampliou. O nazismo, com sua maquinaria industrial, é prova disso.
A “explosão do tempo” e o papel do historiador
Contra a linearidade do historicismo, Benjamin propõe o conceito de agora-tempo (Jetztzeit): um instante carregado de intensidade histórica, em que o passado irrompe no presente, exigindo ação. A história, para ele, não avança por continuidade, mas por interrupções. Cada momento histórico contém a possibilidade de uma redenção, uma chance de reescrever simbolicamente o passado e libertar as vítimas do esquecimento.
O historiador, então, não é um colecionador neutro de fatos, mas um agente comprometido. Ele deve:
- resgatar os derrotados,
- romper a narrativa dos vencedores,
- perceber no presente um chamado ético vindo do passado,
- lutar contra a naturalização das injustiças.
A história torna-se, assim, um campo de luta. Ao interpretar o passado, o historiador pode impedir que os opressores continuem vencendo — porque “nem mesmo os mortos estarão a salvo se o inimigo vencer”.
Essa afirmação é uma das mais fortes do texto: a memória é sempre disputada, e esquecer as vítimas é permitir que a injustiça continue.
Teologia e materialismo histórico: um encontro improvável
Um aspecto fascinante da obra é a síntese entre marxismo e teologia judaica. Benjamin não vê os dois campos como opostos, mas como complementares. Da tradição judaica, ele toma a ideia de “redenção”, o poder de libertar o tempo. Do marxismo, o materialismo histórico, que denuncia relações de classe, exploração e alienação.
O resultado é uma filosofia política singular:
- o materialismo histórico dá a análise concreta das estruturas sociais;
- o messianismo judaico oferece a potência para interromper o curso destrutivo da história.
Assim, a revolução não é apenas mudança de estruturas econômicas, mas também interrupção temporal, uma espécie de “salto do tigre” em direção ao futuro — ou melhor, em direção ao passado, resgatando aquilo que foi esmagado.
As vítimas como centro da história
Ao contrário das narrativas oficiais, Benjamin exige que o historiador dê voz aos perdedores. Os “vencidos” — trabalhadores, minorias, povos colonizados, dissidentes, vítimas do fascismo — devem ocupar o centro da reflexão histórica.
Ele afirma que cada conquista cultural da humanidade está manchada pelo sofrimento daqueles que foram sacrificados para que ela existisse. Um monumento de cultura é, ao mesmo tempo, um monumento de barbárie. Essa perspectiva desconstrói o glorificado “patrimônio universal” e exige que o historiador revele a violência escondida atrás das grandes narrativas civilizatórias.
Atualidade da obra: política, memória e resistência
Mesmo escrita em 1940, as Teses permanecem atuais. Em um mundo marcado por:
- revisionismos históricos,
- manipulação política da memória,
- nacionalismos agressivos,
- desigualdades persistentes,
- crises de refugiados,
- novos autoritarismos,
O texto de Benjamin funciona como alerta ético. Ele lembra que a história não é neutra, que a memória precisa ser protegida e que a luta contra a injustiça é também uma luta contra narrativas que apagam sofrimentos.
O pensamento benjaminiano inspira movimentos de memória, estudos culturais, filosofia política, historiografia crítica e teorias da resistência.
Estilo: poético, enigmático e fulgurante
O texto é curto, mas extremamente denso. Benjamin escreve como poeta e filósofo ao mesmo tempo. Cada tese é uma imagem, uma metáfora ou um fragmento teológico que exige interpretação cuidadosa.
Não há explicações diretas, mas sugestões, lampejos e intuições. Essa natureza fragmentária torna Sobre o Conceito de História um livro inesgotável: cada leitura revela algo novo, e sua força reside tanto no conteúdo quanto na forma.
Conclusão
Sobre o Conceito de História é uma das obras mais poderosas e desafiadoras de Walter Benjamin — e uma das mais importantes do pensamento crítico do século XX. O texto propõe uma ruptura radical com a historiografia tradicional, desmascarando o mito do progresso e convocando o historiador a agir de forma ética e política.
Benjamin oferece um modelo alternativo, messiânico e materialista, em que o passado não está morto: ele irrompe no presente, clamando por justiça. A história, longe de ser uma linha contínua, é feita de interrupções, explosões, instantes decisivos em que o oprimido pode ser visto, lembrado e, simbolicamente, redimido.
Ler Benjamin é entrar em contato com um pensamento que não apenas interpreta o mundo, mas exige transformá-lo — começando pelo resgate das vozes silenciadas. É uma obra para tempos de crise, escrita para que nenhum esquecimento se torne definitivo.
Até mais!
Tête-à-Tête

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