Entre as comédias mais conhecidas, divertidas e controversas de Shakespeare, A Megera Domada ocupa uma posição singular. Escrita por volta de 1594, a peça combina humor burlesco, crítica social, teatralidade metalinguística e um debate intenso sobre papéis de gênero. Por isso, continua despertando discussões apaixonadas — ora vista como sátira, ora como comentário social, ora como obra problemática, e frequentemente como uma peça cheia de ironias sutis.

Esta resenha apresenta o enredo, os temas essenciais e a complexidade interpretativa da peça, destacando seu caráter teatral e suas múltiplas camadas de leitura.


Enredo: uma “domação” que começa como farsa

A trama gira em torno de duas irmãs:

  • Bianca, jovem dócil, cortejada por vários pretendentes;
  • Catarina (Katherina), temperamental e verbalmente agressiva, vista por todos como “a megera”.

Seu pai, Batista, decide que Bianca só poderá casar quando Catarina encontrar marido. Surge então Petrúquio, um cavalheiro ousado e astuto, que afirma poder “domar” a difícil Catarina — sobretudo atraído pelo generoso dote que receberá ao casar-se com ela.

O público acompanha a corte insistente (e exagerada) de Petrúquio, o casamento turbulento e os métodos excêntricos que ele utiliza para “moldar” Catarina: privação de comida, de sono, contradições grotescas, elogios hiperbólicos, tudo apresentado de modo caricatural, como se fosse um jogo teatral dentro da própria peça.

Paralelamente, a disputa entre os pretendentes de Bianca — Hortênsio, Gremio e Lucêncio — forma o núcleo cômico secundário, estruturado em disfarces, enganos e reviravoltas típicas do humor shakespeariano.

A obra culmina com a famosa cena final, em que Catarina surpreende a todos ao discursar sobre a importância da obediência e do respeito da esposa ao marido — um momento interpretado tanto como submissão literal quanto como performance irônica, dependendo da leitura.


Uma comédia de farsa e exagero

Embora muitos leitores modernos se incomodem com o tema da “domação”, é crucial notar o tom de farsa que atravessa toda a peça. Nada em A Megera Domada pretende ser realista:

  • Petrúquio age de maneira abertamente teatral, quase como um bufão.
  • Suas estratégias são caricaturas de táticas de adestramento.
  • A própria transformação de Catarina ocorre em um ambiente de exagero e absurdo.
  • Os pretendentes de Bianca vivem trocando identidades e ridicularizando normas sociais.

O mundo da peça é propositalmente grotesco e cômico — um palco onde comportamentos extremos são levados ao limite para expor contradições sociais.

Shakespeare utiliza o humor como forma de crítica, não de prescrição moral. A peça parece zombar tanto da rebeldia explosiva de Catarina quanto da arrogância performática de Petrúquio.


O prólogo ausente: a peça dentro da peça

Uma característica frequentemente esquecida nas adaptações modernas é que A Megera Domada começa com uma moldura: a “Induction”, em que um bêbado chamado Christopher Sly é enganado por nobres que o convencem de que é um senhor rico. Para entretê-lo, mandam representar… exatamente a peça A Megera Domada.

Essa estrutura de teatro dentro do teatro sugere que o público deve encarar a história como entretenimento exagerado, como uma farsa criada para divertir um bêbado crédulo — e, por extensão, o espectador da época.

Esse enquadramento reforça a ideia de que o comportamento de Petrúquio não deve ser tomado literalmente, mas interpretado dentro do código cômico da peça.


Catarina: de vilã a protagonista complexa

Katherina é um dos personagens femininos mais enigmáticos de Shakespeare. Aparece inicialmente como figura marginalizada: ninguém a compreende, todos a rejeitam, e até seu pai demonstra preferência explícita pela irmã mais nova.

Sua “rebeldia” pode ser vista como reação à injustiça e ao confinamento social que a cerca. Ela não é apenas explosiva — é inteligente, espirituosa, rápida e capaz de dominar disputas verbais.

Ao longo da peça, sua trajetória não é tanto de “domação”, mas de descoberta de um espaço onde sua voz pode ser ouvida. Há leituras que sugerem que, ao reconhecer o jogo teatral de Petrúquio, Catarina passa a jogar também — e que o famoso discurso final é uma performance irônica, uma encenação consciente para vencer o jogo social.

Outras leituras a veem como efetivamente transformada, mas de modo mais sutil: não quebrada, mas adaptada às convenções sociais de seu tempo.

Essa ambivalência é justamente o que torna a personagem tão rica.


Petrúquio: bufão, tirano ou parceiro de jogo?

Petrúquio pode ser interpretado de duas maneiras principais:

a) Como tirano, manipulador e autoritário

Ele usa métodos coercitivos para controlar Catarina, ridiculariza-a, contraria suas percepções da realidade e emprega estratégias de privação para “submetê-la”.

b) Como figura cômica envolvida numa farsa teatral

Muitas encenações interpretam Petrúquio como alguém que percebe que Catarina está presa a um papel social e tenta “jogar” com ela usando exageros farsescos — testando limites, propondo uma dramatização exagerada da dinâmica matrimonial.

Quando lido como comédia, seu comportamento é menos opressivo e mais absurdo, parte de um jogo mútuo.

Shakespeare deixa espaço para ambas as leituras, o que explica por que a peça atravessa séculos com interpretações tão divergentes.


Subtexto social: casamento, poder e teatralidade

A peça discute, de modo irônico e às vezes desconfortável, os papéis de gênero na sociedade elisabetana. O casamento aparece como um mercado regulado por dotes, aparências, interesses e estratégias. O amor, quando surge, é frequentemente secundário.

Bianca, vista como dócil, é na verdade mais manipuladora do que parece; enquanto Catarina, vista como insuportável, revela profundidade, inteligência e, possivelmente, ironia.

A peça também questiona a própria natureza do poder:

  • Quem realmente domina quem?
  • O discurso de Catarina é sincero ou uma encenação?
  • Petrúquio “vence” ou apenas entra em acordo com a esposa?
  • O controle é real ou performativo?

Essas perguntas mostram que Shakespeare não entrega respostas prontas — oferece tensão, ambiguidade e espaço para reflexão.


O final polêmico: submissão ou estratégia?

O monólogo final de Catarina é provavelmente um dos trechos mais discutidos da obra de Shakespeare. Ela fala longamente sobre dever, obediência e o papel da esposa submissa. Para alguns, é a confirmação do machismo da peça. Para outros, é uma subversão irônica.

Muitos estudiosos apontam que:

  • O tom pode ser lido como zombaria, não como rendição.
  • Catarina pode estar ironizando os presentes e afirmando seu próprio controle.
  • O discurso pode ser uma estratégia teatral: ela “vence” porque sabe interpretar o papel esperado.

A multiplicidade de interpretações é parte do encanto — e também da inquietação — que a peça provoca.


O legado duradouro da obra

Ao longo dos séculos, A Megera Domada inspirou adaptações, versões modernizadas, filmes (como 10 Things I Hate About You), musicais e reinterpretações feministas. A obra continua viva justamente porque não é simples: é provocadora, contraditória, divertida e inquietante.

Shakespeare toca em temas como:

  • identidade e papel social,
  • casamento e poder,
  • masculinidade e feminilidade,
  • liberdade, linguagem e encenação,
  • aparência versus realidade.

Trata-se de uma comédia que exige do leitor não apenas riso, mas pensamento crítico.


Conclusão

A Megera Domada permanece uma das obras mais fascinantes e polêmicas de Shakespeare. Embora envolta no humor farsesco típico das comédias elisabetanas, a peça oferece camadas profundas de ambiguidade e comentário social. Catarina e Petrúquio, longe de representarem papéis estáticos, tornam-se símbolos das tensões entre identidade e expectativa social, entre teatro e realidade, entre poder e performance.

Lida como sátira, farsa ou crítica social, a obra ressalta a complexidade das relações humanas e o caráter teatral da vida cotidiana. É justamente essa multiplicidade interpretativa que mantém a peça viva — aberta a novas leituras, debates e encenações.


Até mais!

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