Em 1921, Walter Benjamin escreve Comentário ao Evangelho Segundo São Mateus, um breve mas significativo conjunto de anotações teológico-filosóficas que revelam o interesse do pensador alemão pela dimensão religiosa, pela linguagem sagrada e pela figura do Messias enquanto categoria histórica e espiritual. Longe de realizar uma exegese convencional ou confessional, Benjamin lê o texto bíblico como um campo de tensão entre história e eternidade, entre palavra humana e palavra divina, e entre o acontecimento narrado e a promessa sempre por realizar. Sua abordagem, mais do que explicar o Evangelho, busca mostrar sua potência como forma de pensamento e como horizonte para o agir humano.

Benjamin reconhece em Mateus um evangelista profundamente preocupado com a realização das promessas veterotestamentárias. Sua narrativa, frequentemente pontuada pela expressão “para que se cumprisse”, posiciona Cristo não como ruptura arbitrária, mas como cumprimento escatológico. Esse elemento atrai Benjamin, pois dialoga com sua ideia de tempo messiânico: um tempo não cronológico, mas qualitativo, em que o sentido da história se ilumina retroativamente. Para Benjamin, o Messias não é apenas personagem; é categoria que transforma o entendimento humano da realidade, pois introduz o instante capaz de interromper a continuidade histórica, revelando uma verdade antes velada.

Outro ponto essencial de sua leitura é o papel da linguagem. Benjamin compreende que, no Evangelho, a palavra não é simples signo descritivo; ela age, cria, ordena e redime. A linguagem de Cristo — sobretudo nas parábolas — não é pedagógica no sentido moderno, mas simbólica e performativa, convidando o ouvinte a abandonar o entendimento literal e ingressar em um domínio onde significado e vida se fundem. A palavra evangélica não apenas comunica uma doutrina, mas convoca à transformação existencial. Nisso, Benjamin encontra afinidade com sua própria concepção da linguagem pura, na qual a verdade não é mera informação, mas revelação que ultrapassa lógica e discurso.

Ao analisar o Sermão da Montanha, Benjamin percebe o núcleo ético do texto: não se trata apenas de uma moral elevada, mas de uma lógica espiritual que subverte o mundo. A bem-aventurança dos pobres, mansos, perseguidos e humildes não é recompensa psicológica, mas afirmação de que o Reino de Deus opera segundo valores opostos aos do poder terreno. Dessa forma, o Evangelho, em sua leitura, é uma crítica radical a toda forma de legalismo moral ou político baseado na força, no mérito ou no sucesso visível.

Por fim, Benjamin destaca o caráter paradoxal do cristianismo primitivo: sua força não está na autoridade institucional, mas na fraqueza, no silêncio e no escândalo da cruz. O triunfo narrado por Mateus não é militar, filosófico ou racionalista; é o triunfo da obediência e do sacrifício, cujo sentido não se presta ao cálculo utilitário. Assim, o evangelho torna-se um convite permanente à conversão da consciência e da linguagem.

O texto de Benjamin, embora breve, revela uma compreensão profunda: Mateus não é um documento religioso apenas; é uma chave interpretativa da história humana. Nesse sentido, ler Mateus, para o filósofo, não é somente revisitar o passado — é manter viva a esperança de que cada gesto, palavra e decisão podem participar, ainda que invisivelmente, do tempo messiânico que nunca se esgota.


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