Entre os séculos XVII e XVIII, a filosofia europeia foi marcada por um intenso debate em torno da origem e dos limites do conhecimento humano. Duas correntes se destacaram nesse cenário: o racionalismo, representado por René Descartes, e o empirismo, cuja base foi lançada por John Locke e aprofundada por David Hume.
Esses pensadores buscaram responder a uma questão fundamental: como o ser humano conhece a realidade? A resposta de cada escola determinou não apenas o rumo da epistemologia moderna, mas também a maneira como o Ocidente passou a compreender a ciência, a moral e a própria ideia de verdade.
O racionalismo defendia que o conhecimento verdadeiro nasce da razão, fonte segura e autônoma das ideias; o empirismo, por sua vez, afirmava que todo conhecimento deriva da experiência sensível, negando a existência de ideias inatas.
A tensão entre essas duas perspectivas delineou o espírito filosófico moderno e abriu caminho para a síntese crítica de Immanuel Kant, que tentaria conciliar ambas.
O Contexto Filosófico da Época
O século XVII foi o berço da revolução científica. Galileu, Kepler e Newton transformaram a visão de mundo, substituindo a cosmologia aristotélica por uma física baseada em leis matemáticas. A confiança na razão e na observação levou os filósofos a repensar os fundamentos do saber.
Nesse contexto, surgem duas perguntas centrais:
- Qual é a origem do conhecimento?
- Quais são os critérios de sua validade?
Os racionalistas (Descartes, Spinoza, Leibniz) acreditavam que a razão, por meio de princípios universais e necessários, é capaz de alcançar verdades absolutas, semelhantes às da matemática.
Os empiristas (Locke, Berkeley, Hume) sustentavam que a mente é como uma tábula rasa — uma folha em branco — e que todo conhecimento provém da experiência sensível e da observação.
O Racionalismo de René Descartes
A Razão como Fundamento do Conhecimento
René Descartes (1596–1650), considerado o pai da filosofia moderna, inaugura o racionalismo ao propor que a razão é a única base segura para o conhecimento verdadeiro. Em um tempo marcado pela dúvida e pelas mudanças científicas, ele buscava um fundamento indubitável para o saber.
Em sua obra “Discurso do Método” (1637), Descartes afirma que é preciso rejeitar todas as crenças duvidosas e reconstruir o edifício do conhecimento a partir de princípios certos. Seu método baseia-se em quatro regras: evidência, análise, síntese e enumeração.
O ponto de partida do pensamento cartesiano é a dúvida metódica: duvidar de tudo o que possa ser falso — dos sentidos, das opiniões e até das demonstrações matemáticas —, para encontrar algo absolutamente certo.
Essa busca culmina na célebre conclusão:
“Cogito, ergo sum” — Penso, logo existo.
O pensamento, ou consciência de si, é o primeiro conhecimento indubitável e o alicerce da filosofia cartesiana.
Ideias Inatas e Clareza da Razão
Para Descartes, o conhecimento não se origina dos sentidos, que frequentemente nos enganam, mas das ideias inatas — verdades que pertencem à própria estrutura da razão humana.
A mente possui ideias que não dependem da experiência: as noções de substância, de perfeição, de infinito e de Deus. Estas são impressas em nós por natureza.
A certeza científica, portanto, não é empírica, mas racional: é aquilo que se apresenta à mente com clareza e distinção. Assim, as ciências devem imitar o rigor da matemática, deduzindo conclusões a partir de princípios evidentes.
O Mundo como Mecanismo
A filosofia cartesiana também se estende à natureza. Descartes vê o mundo físico como uma máquina regida por leis matemáticas. A razão humana, refletindo a racionalidade divina, pode compreender essas leis e dominar o mundo natural.
O racionalismo cartesiano inaugurou a confiança moderna na ciência e na razão como instrumentos de verdade, mas também gerou críticas — sobretudo dos empiristas, que negavam a existência de ideias inatas e questionavam o poder absoluto da razão.
O Empirismo de Locke e Hume
John Locke: a Mente como Tábula Rasa
John Locke (1632–1704), em sua obra “Ensaio sobre o Entendimento Humano” (1690), inaugura o empirismo moderno.
Contra Descartes, Locke afirma que não existem ideias inatas: a mente é como uma tábula rasa (folha em branco), e todo conhecimento deriva da experiência.
Segundo ele, há dois tipos de experiência:
- Sensação — o contato direto com o mundo externo, que fornece percepções sobre cores, sons, formas e movimentos.
- Reflexão — a observação interna das operações da própria mente (pensar, duvidar, desejar).
Essas duas fontes geram todas as nossas ideias, que se combinam para formar conceitos mais complexos.
Locke distingue também entre qualidades primárias (como extensão e movimento, inerentes aos objetos) e qualidades secundárias (como cor e sabor, que existem apenas na mente do sujeito).
O conhecimento, para ele, é a percepção da correspondência entre ideias. Não alcançamos a essência das coisas, mas apenas as representações mentais que formamos a partir da experiência.
David Hume: o Ceticismo Empirista
David Hume (1711–1776) leva o empirismo a suas consequências mais radicais. Em obras como “Tratado da Natureza Humana” (1739) e “Investigação sobre o Entendimento Humano” (1748), ele afirma que todo o conteúdo da mente deriva de impressões sensoriais (fortes e vivas) e de ideias (cópias enfraquecidas dessas impressões).
Hume rejeita completamente a noção de substância, de alma ou de causalidade como algo objetivo. Quando acreditamos que um evento causa outro, não estamos percebendo uma conexão real, mas apenas um hábito mental, formado pela repetição.
“A causalidade não é algo que vemos; é algo que acreditamos ver.”
Do mesmo modo, a identidade pessoal — a ideia de um “eu” permanente — é apenas uma ilusão de continuidade criada pela sucessão de percepções.
O empirismo de Hume conduz, portanto, a um ceticismo radical: não podemos afirmar nada com certeza sobre o mundo exterior, apenas descrever o modo como as percepções se encadeiam em nossa mente.
Confronto entre Racionalismo e Empirismo
| Questão | Racionalismo (Descartes) | Empirismo (Locke e Hume) |
|---|---|---|
| Origem do conhecimento | Ideias inatas e dedução racional | Experiência sensível e observação |
| Critério de verdade | Clareza e distinção das ideias | Correspondência com a experiência |
| Papel dos sentidos | Enganosos, subordinados à razão | Fontes principais do conhecimento |
| Natureza da mente | Ativa, dotada de ideias próprias | Passiva, receptora de impressões |
| Certeza do conhecimento | Possível pela razão pura | Limitada à probabilidade e à crença |
| Visão de mundo | Mecanicista e racional | Fenomenista e cética |
Descartes confia na razão como espelho da ordem divina; Locke e Hume, ao contrário, mostram que o conhecimento humano é frágil, dependente da experiência e incapaz de alcançar a essência das coisas.
O racionalismo busca a necessidade lógica; o empirismo, a verificação sensível. Enquanto o primeiro aspira à verdade universal, o segundo aceita a limitação do saber humano.
Influência e Síntese Posterior
O confronto entre racionalismo e empirismo não se resolveu no século XVIII, mas serviu de base para o pensamento moderno.
Immanuel Kant (1724–1804), ao ler Hume, afirmou que este o “despertou do sono dogmático”. Em sua “Crítica da Razão Pura” (1781), Kant propôs uma síntese: embora todo conhecimento comece com a experiência (empirismo), ele não se origina apenas dela — é a razão (racionalismo) que organiza os dados sensíveis em formas universais de entendimento.
A partir dessa conciliação, a filosofia moderna avançou para novas dimensões, unindo o rigor lógico à análise da experiência.
Conclusão
O racionalismo de Descartes e o empirismo de Locke e Hume representam dois polos fundamentais da filosofia moderna. Ambos partem da busca por um conhecimento seguro, mas seguem caminhos opostos: um pela via da razão pura, outro pela da experiência sensível.
Descartes inaugura a confiança na razão como luz natural, capaz de descobrir verdades absolutas; Locke e Hume revelam os limites dessa pretensão, mostrando que a mente humana está ancorada na experiência e sujeita ao erro.
O debate entre razão e experiência não é apenas histórico: continua a moldar a ciência, a ética e a cultura contemporânea. Ainda hoje, a tensão entre o pensamento lógico e o dado empírico sustenta o progresso do saber humano.
Se o racionalismo representa o sonho de certeza, o empirismo nos lembra da humildade diante da realidade. Entre ambos, o pensamento moderno aprendeu que conhecer é sempre buscar — e nunca possuir por completo — a verdade.
Referências Bibliográficas
- DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
- LOCKE, John. Ensaio sobre o Entendimento Humano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.
- HUME, David. Investigação sobre o Entendimento Humano. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
- KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
- COTTINGHAM, John. Descartes. São Paulo: Loyola, 2000.
- AYER, A. J. Hume. Oxford: Oxford University Press, 1980.
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