Publicado em 1944, São Jorge dos Ilhéus é a continuação direta de Terras do Sem-Fim e consolida o ciclo cacaueiro na obra de Jorge Amado. O autor, nesse romance, amplia o olhar sobre a região do sul da Bahia — especialmente as cidades de Ilhéus e Itabuna — e revela, com vigor narrativo e crítica social, a transformação de uma sociedade marcada pela violência, pelo poder econômico e pelas contradições do progresso.
Se em Terras do Sem-Fim acompanhamos a conquista das terras e as lutas sangrentas entre coronéis pelo domínio das plantações de cacau, em São Jorge dos Ilhéus o foco se desloca para o desenvolvimento urbano e a ascensão da burguesia cacaueira. Jorge Amado retrata o momento em que os antigos senhores de fazenda passam a se tornar comerciantes, exportadores e políticos — figuras que, sob uma aparência de civilização, mantêm o mesmo espírito de dominação e exploração.
A narrativa se estrutura em torno de dois eixos principais: a decadência moral dos coronéis e o surgimento de novas forças sociais que começam a questionar a ordem estabelecida. O autor apresenta uma galeria de personagens complexos e vívidos, em que cada figura representa um aspecto da sociedade baiana. Entre eles, destaca-se o coronel Misael Tavares, símbolo do poder tradicional, cuja ambição e hipocrisia o colocam no centro das intrigas locais. Há também figuras como o comerciante Juvenal e o jornalista José Cordeiro, que representam, respectivamente, o oportunismo e a consciência crítica.
Jorge Amado compõe esse painel com uma linguagem calorosa e envolvente, misturando o lirismo das descrições da paisagem baiana com a dureza do realismo social. O mar, o cacau e o povo são os elementos vitais da narrativa — símbolos de uma terra fértil, mas explorada. A prosa de Amado pulsa com o ritmo do cotidiano: as feiras, os cabarés, as festas religiosas e as disputas políticas formam o pano de fundo de uma sociedade em efervescência.
Um dos grandes méritos do romance está na capacidade do autor de retratar o processo de urbanização de Ilhéus sem perder a dimensão humana da história. O “progresso” chega com seus navios, fábricas e bancos, mas também com novas formas de desigualdade. O poder muda de rosto, mas não de essência. Os velhos coronéis se adaptam aos novos tempos, enquanto o povo — trabalhadores, pescadores, lavradores e mulheres humildes — continua à margem.
A crítica social, que é marca registrada de Jorge Amado, aparece com força neste livro. O autor denuncia o egoísmo das elites, o cinismo político e a exploração do trabalhador. Através de uma narrativa coral, ele mostra como o sonho de riqueza e modernidade se constrói sobre a injustiça. Ainda assim, há em sua escrita uma ternura pelo povo simples, cuja dignidade resiste mesmo diante da opressão. Essa ambiguidade — entre denúncia e esperança — confere ao romance uma profundidade emocional rara.
Outro ponto de destaque é o retrato das mulheres. Jorge Amado dá voz a personagens femininas fortes, que se movem entre o amor, o desejo e a luta por autonomia. A prostituta Glória e a sonhadora Marialva são exemplos de mulheres que, mesmo dentro de uma sociedade patriarcal, afirmam sua humanidade e desafiam as convenções morais. Amado as retrata sem moralismo, com olhar compassivo e realista.
Do ponto de vista estético, São Jorge dos Ilhéus representa uma transição na carreira do autor. Ainda há o vigor épico e o tom panfletário das obras anteriores, mas começa a surgir uma prosa mais madura, mais voltada para o humano do que para o puramente ideológico. Jorge Amado ainda é o escritor engajado, comunista, defensor dos oprimidos, mas também o romancista que entende o drama individual e a complexidade das paixões.
A simbologia do título é reveladora. São Jorge, o santo guerreiro, protetor dos fracos contra o dragão da injustiça, é também o padroeiro de Ilhéus. No romance, essa figura mítica representa a luta constante entre o bem e o mal, a resistência do povo contra as forças da ganância e da corrupção. A fé popular aparece como um elemento de coesão, um modo de suportar as dores e manter a esperança viva.
O estilo narrativo é característico de Amado: fluente, oral, impregnado de ritmo e musicalidade. Ele escreve como quem conta uma história à beira-mar, com humor, ironia e paixão. A voz do narrador se mistura à do povo, criando uma atmosfera de cumplicidade que aproxima o leitor da realidade retratada. A Bahia de Jorge Amado é, ao mesmo tempo, geográfica e simbólica — um microcosmo do Brasil, com suas contradições, belezas e feridas abertas.
São Jorge dos Ilhéus também é um retrato da transição histórica do Brasil dos anos 1930 e 1940, quando o país começa a deixar para trás o ruralismo arcaico e ingressa em um processo de modernização econômica e política. Jorge Amado capta esse momento com olhar crítico, mostrando que o avanço material não necessariamente significa progresso moral.
Em síntese, o romance é uma crônica da transformação — da terra, das pessoas e dos valores. É também uma elegia à Bahia e ao seu povo, um testemunho da vitalidade de uma cultura que resiste às forças do capital e da corrupção.
Embora menos conhecido do que Gabriela, Cravo e Canela ou Capitães da Areia, São Jorge dos Ilhéus é uma obra fundamental para compreender o universo amadiano. Nele, o autor alcança um equilíbrio entre narrativa social e lirismo poético, criando um retrato inesquecível de uma sociedade em mudança.
Jorge Amado mostra que, por trás da fachada do progresso, continuam as mesmas lutas — entre ricos e pobres, poderosos e oprimidos, justos e corruptos. E é nesse embate eterno, sob o olhar de São Jorge, que o povo de Ilhéus continua a buscar dignidade e liberdade.
São Jorge dos Ilhéus é, portanto, mais do que uma história sobre o cacau: é uma parábola sobre o Brasil, suas esperanças e contradições. Uma obra que, mesmo escrita há mais de 80 anos, continua atual em sua denúncia e em sua fé na força do povo.
Leia a resenha de Terras do Sem-Fim aqui!
Até mais!
Tête-à-Tête

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