Os mangás, hoje conhecidos mundialmente como parte essencial da cultura pop japonesa, não surgiram do nada. Sua história é longa, marcada por influências artísticas, sociais e políticas que moldaram sua linguagem até se tornarem a poderosa indústria cultural que conhecemos. Para compreender o mangá, é preciso viajar ao passado e reconhecer suas raízes na tradição artística do Japão, especialmente na arte ukiyo-e, e entender como o período do pós-guerra foi decisivo para a consolidação desse gênero narrativo.


O berço: a arte do ukiyo-e

O ukiyo-e, expressão que significa “imagens do mundo flutuante”, foi uma forma de arte popular durante o período Edo (séculos XVII a XIX). Trata-se de gravuras em madeira que retratavam o cotidiano urbano, o entretenimento, as paisagens, as cortesãs e os atores de teatro kabuki. Essas imagens circulavam amplamente entre as camadas médias da sociedade japonesa e se tornaram não apenas uma forma de apreciação estética, mas também uma maneira de difusão cultural.

O ukiyo-e tinha como característica principal a combinação de desenho detalhado, narrativas visuais e a capacidade de contar uma história por meio de imagens sequenciais. Se olharmos para algumas dessas gravuras, percebemos o embrião do que mais tarde se transformaria no estilo narrativo do mangá: personagens em movimento, cenas conectadas e um apelo à imaginação do leitor-espectador.

arte ukiyo-e

Além disso, a acessibilidade do ukiyo-e o aproxima da proposta do mangá. Enquanto a pintura tradicional japonesa era reservada às elites, as gravuras eram populares e baratas, alcançando uma audiência muito mais ampla. O mesmo princípio guiaria os mangás séculos depois: arte acessível ao grande público.


Os primeiros passos rumo ao mangá

O termo mangá surgiu oficialmente no início do século XIX, atribuído ao artista Katsushika Hokusai, célebre pelas “36 vistas do Monte Fuji”. Em 1814, Hokusai publicou uma série de cadernos intitulados Hokusai Manga, reunindo desenhos variados de pessoas, animais, expressões e cenas cômicas. O uso da palavra “mangá” pode ser traduzido como “imagens involuntárias” ou “rabiscos divertidos”.

Embora ainda não fossem mangás no sentido moderno — narrativas sequenciais publicadas em revistas —, esses cadernos revelavam o espírito lúdico e experimental que marcaria a linguagem do gênero. Outros artistas da época também começaram a explorar esse estilo, utilizando humor, sátira política e crítica social.

No final do século XIX, com a abertura do Japão ao Ocidente (Restauração Meiji), o contato com os quadrinhos europeus e americanos intensificou-se. Revistas satíricas japonesas começaram a publicar caricaturas inspiradas no modelo ocidental, mas adaptadas ao gosto local. Esse intercâmbio cultural foi fundamental para consolidar o caminho dos mangás como conhecemos hoje.


O impacto da ocidentalização e dos jornais ilustrados

Durante o período Meiji (1868–1912), o Japão passou por profundas transformações. A industrialização, a abertura econômica e a busca por modernização trouxeram novas formas de comunicação. Entre elas, os jornais ilustrados desempenharam papel crucial.

Caricaturistas e ilustradores passaram a usar o termo “mangá” para designar suas produções, que uniam humor, crítica política e narrativa visual. Influências diretas dos quadrinhos americanos, como Yellow Kid e Mutt and Jeff, ajudaram a moldar a ideia de contar histórias em sequência, mas sempre com uma marca japonesa: maior atenção aos detalhes visuais, ao ritmo da leitura e às expressões emocionais.

Essa fusão de influências orientais e ocidentais gerou um terreno fértil para o desenvolvimento do mangá moderno. Ao mesmo tempo, consolidava-se a ideia de que as imagens poderiam ser uma ferramenta não apenas de entretenimento, mas também de crítica social e reflexão cultural.


O Japão no pós-guerra: solo fértil para o mangá moderno

Se as raízes estavam lançadas, foi o pós-guerra que deu ao mangá a forma definitiva. Após a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, o país enfrentava destruição material, crise econômica e uma identidade nacional abalada. Nesse cenário de reconstrução, o mangá se tornou uma válvula de escape cultural e emocional.

O grande nome desse período foi Osamu Tezuka (1928–1989), conhecido como o “Deus do Mangá”. Inspirado pela animação da Disney e pelos quadrinhos americanos, Tezuka revolucionou a narrativa ao introduzir painéis dinâmicos, expressões exageradas e histórias longas que iam muito além do humor. Sua obra Astro Boy (Tetsuwan Atom), lançada em 1952, tornou-se um marco.

Tezuka trouxe ao mangá a noção de “cinematografia em papel”: ângulos de câmera, closes dramáticos e ritmo visual que imitavam a linguagem do cinema. Mais do que isso, ele ampliou o público do mangá. Até então voltado em grande parte para o humor infantil ou sátira, Tezuka abriu espaço para narrativas de aventura, ficção científica, drama e reflexão filosófica.

O pós-guerra também assistiu ao surgimento de gêneros que definiriam o mercado: shonen (para jovens do sexo masculino), shojo (para jovens do sexo feminino) e posteriormente seinen (adultos). Cada um desses estilos explorava diferentes dimensões da experiência humana, desde a amizade e a superação até romances e dilemas existenciais.


Mangá como identidade cultural japonesa

A partir da década de 1960, o mangá já não era apenas entretenimento: era parte da identidade cultural do Japão. Publicações semanais com tiragens milionárias, como a revista Shonen Jump, consolidaram o hábito de leitura. O mangá se tornava uma linguagem popular, acessível e universal dentro da sociedade japonesa.

O período também marcou o fortalecimento da indústria do anime, que caminhava em paralelo com o mangá. Muitas obras de sucesso eram adaptadas para a televisão, ampliando ainda mais sua influência cultural. O ciclo entre mangá e anime ajudou a transformar personagens em ícones globais, projetando a cultura japonesa para além de suas fronteiras.


Do Japão para o mundo

Embora o foco deste artigo seja a origem, é impossível ignorar a dimensão internacional que os mangás conquistaram. O processo iniciado com o ukiyo-e e consolidado no pós-guerra atravessou fronteiras, alcançando os Estados Unidos e a Europa já nos anos 1980 e 1990, até se tornar um fenômeno global no século XXI.

Hoje, o mangá é lido em dezenas de idiomas e inspira gerações de artistas. Sua estética influencia desde a moda até a publicidade, enquanto seus temas variam do mais simples humor ao mais profundo questionamento existencial.


Conclusão

A história do mangá é um exemplo notável de como a arte nasce do encontro entre tradição e inovação. O ukiyo-e, com suas narrativas visuais e acessibilidade, forneceu o terreno fértil. O contato com o Ocidente trouxe novas linguagens e técnicas. E o pós-guerra japonês, com seu clima de reconstrução e busca por identidade, transformou o mangá em um meio poderoso de expressão cultural.

Hoje, quando abrimos um mangá e nos perdemos em suas páginas, estamos não apenas diante de uma forma de entretenimento, mas diante de séculos de história condensados em traços, expressões e histórias que refletem o espírito do Japão e, ao mesmo tempo, falam à humanidade inteira.


Até mais!

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