Publicado em 1939, E Não Sobrou Nenhum (And Then There Were None) é um dos romances mais famosos e ousados de Agatha Christie. Considerado por muitos críticos como sua obra-prima, o livro combina mistério, tensão psicológica e um engenhoso jogo narrativo que mantém o leitor preso do início ao fim. Trata-se não apenas de um romance policial, mas de uma meditação sobre culpa, justiça e o peso da consciência.

A trama começa quando dez pessoas, aparentemente sem relação entre si, recebem convites para passar alguns dias em uma mansão isolada em uma ilha. O anfitrião, um misterioso “Sr. U. N. Owen” (um jogo de palavras para “unknown”, ou “desconhecido”), nunca aparece. Logo após a chegada, os convidados descobrem que foram reunidos para enfrentar acusações de crimes que cometeram no passado e pelos quais nunca foram punidos.

A partir daí, a narrativa se desenrola em um clima de crescente paranoia. Um a um, os personagens começam a morrer de formas que seguem a ordem de uma antiga cantiga infantil — “Dez soldadinhos” — encontrada na mansão. Essa estrutura rítmica dá ao livro um ar sombrio e inevitável, como se os acontecimentos fossem guiados por um destino implacável. A cada morte, a tensão aumenta, e o círculo de suspeitos se estreita: afinal, o assassino só pode ser um dos presentes.

O que diferencia E Não Sobrou Nenhum de outros romances policiais de Christie é a ausência de uma figura central como Hercule Poirot ou Miss Marple. Não há um detetive que conduza a investigação e forneça ao leitor uma voz confiável. Em vez disso, a autora coloca todos os personagens — e o próprio leitor — no mesmo plano de incerteza, explorando o medo, a desconfiança e a luta pela sobrevivência. Essa ausência de um guia seguro intensifica a atmosfera de suspense e claustrofobia.

Do ponto de vista literário, o romance demonstra a habilidade magistral de Christie em manipular ritmo e expectativa. Os capítulos são curtos, objetivos, e cada um termina com uma nota de tensão que impulsiona a leitura. Além disso, o uso da cantiga como estrutura narrativa confere ao enredo uma cadência quase ritualística, transformando o mistério em uma experiência hipnótica.

Os personagens são cuidadosamente construídos: cada um carrega uma culpa secreta, e é justamente esse passado obscuro que os torna vulneráveis. Christie não os apresenta como inocentes injustiçados, mas como pessoas moralmente ambíguas, capazes de conviver com crimes encobertos. Esse aspecto torna o romance mais profundo, pois não se trata apenas de descobrir “quem matou”, mas de refletir sobre a justiça e a responsabilidade pessoal.

O desfecho é uma das grandes ousadias da obra. Sem revelar detalhes, pode-se dizer que Christie subverte as expectativas e conduz a solução de forma a surpreender até os leitores mais experientes. O epílogo, apresentado como uma espécie de confissão, fecha o ciclo com brilhantismo, explicando a lógica por trás da sequência de mortes e deixando o leitor entre o fascínio e o desconforto.

E Não Sobrou Nenhum transcende o gênero policial clássico. Ao explorar o isolamento, a culpa e a inexorabilidade da justiça, Christie constrói um romance que dialoga com o horror psicológico e com a tragédia. Não é à toa que o livro se tornou um dos mais vendidos da autora e da história da literatura mundial, adaptado inúmeras vezes para o teatro, cinema e televisão.

Em resumo, este é um livro em que Agatha Christie levou o romance policial ao limite, criando uma narrativa envolvente e perturbadora que desafia o leitor até a última página. Um clássico atemporal, capaz de surpreender novas gerações com sua engenhosidade narrativa e sua reflexão sobre o peso da moralidade humana.


Até mais!

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