A palavra “vontade” é tão comum em nosso vocabulário cotidiano que muitas vezes esquecemos o peso filosófico que ela carrega. Quando dizemos “eu quero”, estamos expressando algo mais profundo do que um simples desejo momentâneo: estamos tocando em um tema que mobilizou grandes pensadores ao longo da história. Mas como a ideia de vontade se tornou central para compreender a ação humana, a moralidade e até a condição existencial do homem?

Neste artigo, vamos percorrer, de forma didática, o caminho histórico-filosófico dessa noção, revisitando figuras como Santo Agostinho, Duns Scotus, Descartes e Nietzsche, para mostrar como a vontade se consolidou como um dos conceitos mais importantes do pensamento ocidental.


A vontade em Santo Agostinho: o coração inquieto

É com Santo Agostinho (354–430) que a noção de vontade ganha um destaque inédito. Antes dele, filósofos como Platão e Aristóteles falavam em desejo (epithymia), em razão (logos) e em apetite racional, mas não tinham desenvolvido plenamente a ideia de uma força interior capaz de direcionar toda a vida moral.

Agostinho, em suas Confissões, descreve sua própria experiência da vontade como um campo de batalha. Ele se sente dividido entre querer seguir a Deus e querer seguir suas paixões terrenas. Essa tensão leva-o a entender que a vontade não é simplesmente “escolher” racionalmente, mas uma força profunda que pode se inclinar tanto para o bem quanto para o mal.

Daí surge sua famosa frase: “O meu coração está inquieto enquanto não repousar em Ti”. Para Agostinho, a vontade encontra sua plenitude apenas em Deus. Ela não é neutra: é marcada pela condição do pecado original, mas também pela possibilidade da graça divina que a eleva.

👉 Contribuição de Agostinho: Ele inaugura a ideia da vontade como centro da vida moral e espiritual, algo mais profundo que o simples desejo.


Duns Scotus: a vontade como liberdade radical

Na Idade Média, o franciscano João Duns Scotus (1266–1308) dá um passo adiante. Para ele, a vontade é mais importante do que o intelecto. Enquanto a razão nos mostra o que é verdadeiro, a vontade é aquilo que nos torna realmente livres.

Segundo Scotus, o ser humano não está condenado a agir apenas conforme sua natureza ou instinto: ele pode escolher mesmo contra certas inclinações. Essa ênfase na liberdade da vontade preparou terreno para muitas discussões posteriores, inclusive para a modernidade.

Scotus defendia que a vontade humana tem duas inclinações principais:

  1. Amor de justiça – escolher o bem por ser o bem.
  2. Amor de vantagem – escolher o que nos favorece.

Essa dupla dimensão explica por que o ser humano pode agir tanto de forma altruísta quanto egoísta.

👉 Contribuição de Scotus: Ele coloca a vontade como fundamento da liberdade, sublinhando sua primazia sobre o intelecto.


Descartes: a vontade como extensão do poder de Deus

Com a entrada da Modernidade, a noção de vontade adquire um tom diferente. René Descartes (1596–1650), o filósofo do “penso, logo existo”, via na vontade a expressão máxima da liberdade humana.

Para Descartes, a mente tem duas faculdades principais: o intelecto (que conhece) e a vontade (que escolhe). Mas o intelecto é limitado: ele só compreende algumas ideias. Já a vontade é infinita: posso afirmar ou negar qualquer coisa, mesmo além do que entendo.

Esse descompasso entre um intelecto finito e uma vontade aparentemente ilimitada é a raiz dos erros humanos, segundo Descartes. Erramos porque afirmamos ou negamos coisas sem ter clareza suficiente delas.

👉 Contribuição de Descartes: A vontade é ilimitada em seu alcance, o que nos aproxima da liberdade divina, mas também nos torna responsáveis pelos erros.


Nietzsche: a vontade de potência

No século XIX, Friedrich Nietzsche (1844–1900) revoluciona a discussão. Para ele, a filosofia tradicional tinha feito da vontade algo muito “moralizado” e dependente de categorias religiosas ou racionais.

Nietzsche rejeita essa visão. Em obras como Assim Falou Zaratustra e Além do Bem e do Mal, ele introduz a ideia de “vontade de potência” (Wille zur Macht).

A vontade, para Nietzsche, não é simplesmente escolher entre bem e mal, nem buscar apenas a verdade. Ela é a expressão mais profunda da vida: um impulso criador, expansivo, que busca superar limites, afirmar-se e transformar o mundo.

Nesse sentido, a vontade não é um “motor moral”, mas uma força existencial. O ser humano se realiza quando aceita essa dimensão trágica da vida, afirmando sua potência criadora, sem depender de um “mundo superior” ou de normas absolutas.

👉 Contribuição de Nietzsche: A vontade é força vital e criadora, uma superação do moralismo e um chamado à afirmação da vida.


A evolução da ideia: da moral ao existencial

Percorrendo esses pensadores, vemos como a noção de vontade mudou de ênfase:

  • Agostinho: vontade como drama moral e espiritual, marcada pela tensão entre pecado e graça.
  • Scotus: vontade como liberdade radical, capaz de escolher entre altruísmo e egoísmo.
  • Descartes: vontade como faculdade ilimitada, responsável pelos erros e pela dignidade da liberdade humana.
  • Nietzsche: vontade como potência criadora, além da moral tradicional.

A trajetória mostra como a filosofia saiu de uma visão da vontade ligada à religião e à moral, passando pela liberdade racional, até chegar a uma interpretação vitalista e existencial.


Conclusão: por que falar de vontade hoje?

Estudar a história da vontade não é apenas uma curiosidade acadêmica. Esse conceito toca diretamente nossa vida.

  • Quando falamos de autocontrole, estamos nos referindo à tradição agostiniana.
  • Quando pensamos em liberdade de escolha, ecoamos Scotus.
  • Quando reconhecemos que podemos errar por julgar apressadamente, estamos em terreno cartesiano.
  • Quando buscamos afirmar nossa criatividade e potência, nos aproximamos de Nietzsche.

A vontade é, portanto, um fio condutor da experiência humana. Ela não é apenas “querer algo”, mas um campo profundo em que se decide nossa liberdade, nossa moralidade e até o sentido da existência.

Talvez seja por isso que falar de vontade nunca sai de moda: porque, no fundo, todos nós nos perguntamos — o que realmente quero?


Até mais!

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