Publicado postumamente em 1922, Feiras e Mafuás reúne crônicas e artigos de Lima Barreto, escritor cuja obra é marcada pela crítica social e pelo olhar arguto sobre o cotidiano brasileiro, em especial o carioca. Se em seus romances como Triste Fim de Policarpo Quaresma ele expôs, em forma ficcional, as contradições da sociedade, aqui ele se vale do gênero da crônica e do ensaio curto para construir uma radiografia viva, irônica e dolorosa da cidade do Rio de Janeiro e de seus habitantes no início do século XX.

O título já anuncia o tom da obra: “feiras” e “mafuás” remetem aos espaços populares, aos mercados, festas e diversões simples das camadas pobres. É a partir dessa atmosfera que Lima Barreto desloca o olhar do grandioso, do oficial e do “bem-comportado” para a vida cotidiana das ruas, valorizando o que era considerado banal ou mesmo desprezível pela elite letrada da época. Em suas páginas, circulam vendedores ambulantes, artistas mambembes, trabalhadores urbanos, desvalidos e marginais — figuras que a literatura “séria” frequentemente ignorava.

Ao lado dessa descrição colorida da vida popular, o autor faz críticas mordazes à modernização desigual do Rio de Janeiro. Ele observa, com ironia, como a cidade tentava se “europeizar”, adotando modismos importados e práticas elitistas, enquanto relegava os pobres ao abandono. As crônicas denunciam, por exemplo, o descaso das autoridades, a exclusão social e o racismo estrutural que permeava as relações. Nesse sentido, Feiras e Mafuás funciona como um contraponto às narrativas ufanistas da Primeira República, revelando o abismo entre o discurso oficial e a realidade da população.

O estilo de Lima Barreto permanece fiel à sua marca: uma prosa simples, direta e sem rebuscamentos desnecessários, que dá voz ao povo e desafia os padrões da “boa literatura” acadêmica. Ao invés de esconder a oralidade e as expressões populares, ele as valoriza, construindo um retrato mais autêntico da linguagem brasileira. Essa escolha estética é também um gesto político, já que questiona a hegemonia cultural das elites letradas que ditavam o que deveria ou não ser considerado literatura.

Outro aspecto importante da obra é a dimensão afetiva. Embora ácidas em suas críticas, as crônicas de Lima Barreto também carregam uma ternura implícita em relação ao povo simples, às suas festas e às formas de resistência cultural. Ele não se limita a denunciar; também celebra, com delicadeza, a vitalidade da cultura popular carioca, mesmo diante da marginalização.

Ao ler Feiras e Mafuás, percebe-se claramente como Lima Barreto estava à frente de seu tempo. Seu olhar atento para as desigualdades urbanas, seu engajamento na defesa dos excluídos e seu compromisso em retratar o cotidiano com honestidade fazem dele um precursor das discussões sobre identidade nacional, cidadania e cultura popular. A obra é, ao mesmo tempo, denúncia e valorização: denuncia as injustiças sociais e valoriza o universo cultural que nasce da resistência dos pobres.

No conjunto, o livro confirma a relevância de Lima Barreto como cronista da vida brasileira. Sua sensibilidade o levou a enxergar, nas esquinas, feiras e mafuás, a verdadeira alma de um país em formação, com todas as suas contradições. Em contraste com a visão “oficial” de uma nação civilizada e moderna, ele mostra o Brasil real — desigual, contraditório, mas vivo.

Mais de um século após sua morte, Feiras e Mafuás segue atual. Sua crítica à exclusão social e ao racismo, assim como sua valorização da cultura popular, dialogam diretamente com debates contemporâneos. O livro, portanto, não é apenas um registro histórico da vida no Rio de Janeiro do início do século XX, mas também uma reflexão universal sobre as tensões entre centro e periferia, elite e povo, poder e resistência cultural.

Em suma, Feiras e Mafuás é uma obra fundamental para compreender tanto o projeto literário de Lima Barreto quanto a formação da sociedade brasileira. Suas crônicas e artigos revelam um olhar generoso e crítico, capaz de transformar o cotidiano em literatura e, ao mesmo tempo, de confrontar as estruturas sociais que insistem em manter invisíveis aqueles que constituem a verdadeira base do país.


Até mais!

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