Robert C. Davis, historiador norte-americano especializado em história mediterrânea, traz à luz em sua obra Escravos cristãos, senhores muçulmanos uma realidade pouco conhecida e, em muitos contextos, deliberadamente esquecida: a escravidão de cristãos europeus no Mediterrâneo durante os séculos XVI a XVIII. Publicado originalmente em inglês (Christian Slaves, Muslim Masters, 2003), o livro tem como objetivo oferecer uma perspectiva histórica equilibrada sobre um fenômeno que, apesar de sua amplitude, raramente recebe atenção equivalente ao tráfico atlântico de africanos para as Américas.

A pesquisa de Davis se concentra em uma prática sistemática de captura e escravização de homens, mulheres e até crianças europeias por corsários e estados muçulmanos da chamada “Costa da Berbéria” — região que compreendia cidades como Argel, Túnis, Trípoli e, em menor escala, portos marroquinos. Estima-se que, entre 1500 e 1800, mais de um milhão de cristãos tenham sido escravizados nesses territórios. Longe de episódios pontuais, tratava-se de uma verdadeira indústria, alimentada por ataques navais, incursões em vilarejos costeiros e até mesmo pelo sequestro de embarcações inteiras.

Um dos grandes méritos da obra é mostrar que essa escravidão não era apenas uma consequência aleatória da guerra ou da pirataria, mas sim um sistema econômico e social estruturado. Os cativos eram usados como mão de obra em construções, na manutenção de fortificações, em serviços domésticos e até mesmo como remadores em galés — destino temido por sua brutalidade e baixa expectativa de vida. Além disso, havia um intenso mercado de resgate: ordens religiosas católicas, como a dos Trinitários e Mercedários, dedicavam-se a angariar fundos para libertar os cativos, o que reforçava ainda mais a economia do sequestro.

O livro não se limita à denúncia ou ao inventário estatístico. Davis também procura compreender os efeitos culturais e psicológicos dessa escravidão, tanto sobre as comunidades atingidas quanto sobre os próprios indivíduos. Relatos de sobreviventes, cartas de resgate e registros diplomáticos revelam o trauma causado pela captura, a desestruturação de famílias e o medo constante que rondava populações costeiras europeias, da Sicília até a Irlanda. Essa dimensão humana aproxima o leitor daquilo que, muitas vezes, é reduzido a números ou abstrações.

Outro aspecto relevante é a contextualização geopolítica. Davis insere a escravidão branca no Mediterrâneo em um quadro de rivalidade entre cristandade e Islã, que, após as Cruzadas e a Reconquista, continuava a se expressar por meio do conflito marítimo. Nesse sentido, a escravidão funcionava não apenas como prática econômica, mas também como forma de humilhação e instrumento de poder simbólico. Ter cristãos escravizados em Argel ou Túnis era, em certo sentido, uma afirmação da superioridade muçulmana sobre o inimigo europeu, invertendo temporariamente a lógica de dominação.

Entretanto, a obra também enfrenta críticas e debates. Alguns estudiosos apontam que Davis, ao buscar dar visibilidade a esse fenômeno, corre o risco de estabelecer comparações simplistas com a escravidão atlântica. Embora ambos os sistemas tenham sido brutais, suas dimensões, naturezas e impactos históricos foram distintos. A escravidão mediterrânea, por exemplo, não resultou em uma diáspora de proporções semelhantes à africana, nem estruturou sociedades coloniais inteiras. Davis reconhece essas diferenças, mas insiste na necessidade de se romper o silêncio historiográfico em torno da experiência dos cativos cristãos.

Do ponto de vista metodológico, a obra é sólida, apoiada em ampla documentação de arquivos europeus e em fontes da época. A narrativa, embora erudita, é acessível, permitindo ao leitor leigo compreender um capítulo complexo da história global. Davis evita o tom panfletário, mesmo tratando de um tema que poderia ser facilmente instrumentalizado em debates ideológicos contemporâneos sobre choque de civilizações ou tensões entre Ocidente e Islã. Seu foco é histórico, não apologético.

A contribuição do livro, portanto, é dupla. Em primeiro lugar, ele amplia o horizonte da história da escravidão, desafiando uma visão unilateral que a associa exclusivamente à dominação europeia sobre povos africanos. Ao lembrar que milhares de europeus também foram escravizados, Davis reforça a compreensão de que a escravidão, em suas múltiplas formas, foi uma prática humana universal, atravessando culturas e épocas. Em segundo lugar, ao recuperar as vozes dos cativos e os registros de suas experiências, a obra humaniza a história, resgatando indivíduos esquecidos pela narrativa oficial.

Em síntese, Escravos cristãos, senhores muçulmanos é um livro fundamental para todos aqueles que desejam compreender a complexidade das relações entre Europa e mundo islâmico no início da modernidade. Longe de relativizar ou minimizar outras formas de escravidão, ele revela a necessidade de ampliar o olhar e reconhecer que a experiência do cativeiro foi muito mais diversa do que muitas vezes se admite. Trata-se de uma obra provocadora, que convida à reflexão crítica sobre memória histórica, identidade cultural e as formas seletivas de lembrar — ou esquecer — o passado.


Até mais!

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