Lima Barreto, um dos grandes nomes da literatura brasileira do início do século XX, é amplamente reconhecido por sua crítica social mordaz, seu olhar sensível para os marginalizados e sua prosa de forte engajamento político e humano. Em Histórias e Sonhos (1920), coletânea de contos publicada um ano antes de sua morte, o autor reafirma sua marca inconfundível: a combinação entre lirismo, denúncia social e introspecção melancólica.

A obra reúne textos curtos e variados, com temáticas que transitam entre o realismo cru da vida urbana e o onirismo de devaneios poéticos, quase metafísicos. Não se trata apenas de um conjunto de histórias dispersas, mas de uma amostra do universo interior de Lima Barreto: suas inquietações políticas, sua empatia pelos desfavorecidos, seus anseios por justiça e redenção.


Um realismo comprometido com os oprimidos

Nos contos mais realistas, como Um e Outro, Numa e a Ninfa ou A Nova Califórnia, Lima Barreto satiriza a hipocrisia da classe média urbana carioca e denuncia o racismo estrutural, o clientelismo político e a desigualdade social. São textos que mostram o autor como um cronista da miséria moral da sociedade brasileira de sua época, mas sem perder de vista a complexidade psicológica dos personagens. O estilo direto, quase seco, evita floreios desnecessários e reforça o compromisso ético da literatura com a verdade social.

Em O Homem que Sabia Javanês, por exemplo, um dos contos mais conhecidos da coletânea, a ironia é o instrumento que revela o oportunismo e a superficialidade do mundo intelectual. O protagonista, um impostor que finge dominar o idioma javanês, consegue fama e prestígio com base em uma mentira absurda. A crítica de Barreto à farsa institucional e à vaidade acadêmica é tão atual quanto contundente.


O espaço do sonho e da fantasia

Mas Histórias e Sonhos não se limita ao retrato do Brasil urbano e desigual. Como o título sugere, há também contos marcados pela introspecção, pelo lirismo e por uma atmosfera de sonho. Textos como O Cemitério dos Vivos — que antecipa, em tom quase onírico, as experiências do autor com a loucura e o alcoolismo — oferecem um retrato pungente do sofrimento humano interiorizado. Nestes contos, Lima Barreto se distancia da denúncia social explícita e mergulha em angústias existenciais profundas, muitas vezes autobiográficas.

Nesse registro, o autor não apenas denuncia o abandono social dos enfermos mentais e pobres, mas também sugere que o sonho e a imaginação são formas de resistência ao sofrimento e à exclusão. Sonhar, para Barreto, não é fugir da realidade, mas uma maneira de suportá-la.


Um estilo a serviço da verdade

Lima Barreto não era um estilista no sentido clássico da palavra. Sua prosa, embora fluente, tem por vezes traços de oralidade, erros propositais ou simplificações que dialogam com o público mais amplo. Seu objetivo não era exibir erudição ou domínio técnico, mas comunicar com sinceridade e impacto.

Essa escolha estilística se reflete na própria estrutura dos contos: muitos têm finais abertos, personagens incompletos ou situações banais transformadas em alegorias profundas. O resultado é uma literatura de forte apelo ético, que privilegia a função social da escrita e busca desmascarar os mecanismos de opressão que passam despercebidos aos olhos da elite letrada.


Considerações finais

Histórias e Sonhos é uma obra que condensa a essência da literatura de Lima Barreto: denúncia, lirismo, ironia e compaixão. A coletânea reafirma a atualidade de sua escrita e sua importância como voz dissonante no cânone brasileiro, um autor que recusou os ornamentos do simbolismo e do parnasianismo para colocar a literatura a serviço dos desvalidos.

Seus contos, embora escritos há mais de cem anos, continuam a dialogar com os dilemas morais e sociais do Brasil contemporâneo: o racismo velado, a desigualdade abissal, a alienação intelectual, a hipocrisia política. Ler Lima Barreto hoje é redescobrir a força de uma literatura que sonha com um mundo mais justo — sem jamais fechar os olhos para a realidade.


Até mais!

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