A lucidez implacável diante dos limites do poder e da irrupção da violência

Em Sobre a Violência, publicado em 1970, Hannah Arendt se propõe a investigar um dos temas mais inquietantes do século XX: o papel da violência na política. Fruto de um tempo marcado por guerras, revoluções, assassinatos políticos e rebeliões estudantis, o livro é uma resposta às tentativas contemporâneas de justificar ou naturalizar a violência como instrumento legítimo da ação política. Arendt confronta tais visões com sua notável capacidade analítica, e a partir delas constrói uma distinção central e perturbadora: a violência não é expressão do poder, mas sim seu oposto.


Violência e poder: distinções conceituais

A primeira e talvez mais importante contribuição do livro é a separação radical entre os conceitos de poder, autoridade, força e violência — termos frequentemente usados como sinônimos na linguagem política vulgar. Para Arendt, essa confusão semântica leva a conclusões erradas e a políticas desastrosas.

O poder, segundo a filósofa, emerge sempre de forma coletiva e horizontal: ele é fruto da ação conjunta dos cidadãos, da deliberação e do consenso. Um governo tem poder porque há um corpo social que o reconhece, o legitima e o sustenta. O poder é, portanto, essencialmente relacional e estável.

A violência, por sua vez, é sempre instrumental: ela serve para atingir um fim que está fora dela. É uma ferramenta, uma forma de fazer algo acontecer mesmo sem o consentimento dos outros. Sua característica é a eficiência imediata, mas precária. Ao contrário do poder, que exige permanência e coesão, a violência precisa ser constantemente exercida e renovada, pois, sem sustentação popular, ela se esgota ou degenera em tirania.

A autoridade, distinta de ambas, é o reconhecimento quase automático de uma hierarquia legítima (como um professor em sala de aula ou um juiz em tribunal). Já a força é mais próxima de algo físico ou natural, muitas vezes incontrolável — como um furacão, ou a força da juventude.

Portanto, o grande insight de Arendt é este: quando um governo recorre sistematicamente à violência, isso é sinal de que perdeu seu poder. A violência é, por definição, um substituto do poder. “A violência pode destruir o poder, mas jamais poderá criá-lo”, escreve ela com precisão cirúrgica.


Marxismo, revoluções e burocracia

Arendt não economiza críticas ao marxismo clássico, especialmente à sua ênfase histórica na luta de classes como motor da história e à sua defesa da violência revolucionária como necessária para instaurar uma nova ordem. Para ela, a confiança cega na inevitabilidade histórica das revoluções e na violência como instrumento legítimo para moldar a sociedade revelou-se trágica, sobretudo nos regimes comunistas totalitários do século XX, como o stalinismo.

Ao mesmo tempo, Arendt também analisa como, nas democracias liberais, a proliferação da burocracia — que ela define como “governo de ninguém” — cria uma sensação de impotência entre os cidadãos. É nesse vácuo de representação que a violência muitas vezes emerge, não como causa, mas como consequência do esvaziamento político. A violência, neste caso, torna-se uma espécie de último recurso contra um sistema que parece surdo e impenetrável.

Ela observa: “Se as instituições representativas se tornam inertes, e os canais tradicionais de participação política se mostram bloqueados, então a violência explode como um grito de presença”. Porém, Arendt recusa tanto a romantização quanto a demonização desses surtos violentos: ela os compreende, mas não os justifica.


A violência nas revoluções e nas lutas anticoloniais

Outro ponto marcante do livro é a crítica que Arendt faz à teoria da violência de Frantz Fanon, filósofo que defendia a violência como uma forma de regeneração do sujeito colonizado. Arendt reconhece a brutalidade do colonialismo, mas vê na romantização da violência uma armadilha que apenas perpetua o ciclo de dominação. A violência, para ela, não cria sujeitos políticos duradouros, mas apenas ressentidos ou tiranos em potencial.

Da mesma forma, ela adverte que revoluções bem-sucedidas não triunfam pela violência, mas pela capacidade de criar novas formas de poder legítimo. Assim foi com os Estados Unidos em 1776, onde a violência da guerra de independência foi menos importante do que o processo deliberativo que resultou na Constituição. Em contraste, revoluções que apostaram exclusivamente na violência — como a Revolução Francesa ou a Russa — terminaram em formas brutais de tirania.


Violência tecnológica e o perigo do fim da política

Arendt encerra o ensaio com reflexões sobre os novos meios de destruição em massa, como as armas nucleares. Ela observa que a escalada da violência tecnológica já não obedece mais a propósitos políticos claros: tornou-se autônoma, impessoal, capaz de aniquilar a vida sem qualquer deliberação humana. Nesse sentido, a violência extrema é também o fim da política, pois a política só existe onde há pluralidade, diálogo e ação conjunta — tudo que a violência destrói.

Há, portanto, um aviso implícito, quase profético: se a política ceder inteiramente à lógica da força, se os homens perderem a capacidade de agir em conjunto e de fundar novos poderes legítimos, então estaremos não apenas diante do colapso da liberdade, mas da própria desumanização do mundo.


Conclusão: um ensaio necessário em tempos de polarização

Sobre a Violência é, em sua brevidade (menos de 100 páginas), um tratado profundo, denso e, em muitos aspectos, atualíssimo. Em uma era em que o discurso político frequentemente se embriaga com palavras como “combate”, “resistência”, “guerra cultural” e “revolução”, a leitura de Arendt atua como um necessário antídoto. Ela nos convida a pensar com precisão — e com responsabilidade — sobre aquilo que está verdadeiramente em jogo quando se apela à violência como solução.

Ao separar poder e violência, Arendt não apenas desmonta os sofismas políticos dos totalitarismos de esquerda e de direita, mas também nos alerta: quando uma sociedade abandona o diálogo e recorre ao porrete, ela já não é mais livre — mesmo que diga lutar por liberdade.

Em tempos de democracias fragilizadas, populismos agressivos e discursos polarizados, retornar a Arendt é, mais do que um gesto intelectual, um ato de lucidez. E, talvez, um ato de resistência — não pela violência, mas pelo poder de pensar juntos.


Até mais!

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