Publicado originalmente em 2000, Dois Irmãos, do escritor amazonense Milton Hatoum, é um dos romances mais expressivos da literatura brasileira contemporânea. Com forte carga simbólica e emocional, a obra constrói uma narrativa densa e lírica sobre a decadência de uma família libanesa em Manaus, ambientada ao longo do século XX. A trama, que gira em torno da rivalidade entre os gêmeos Yaqub e Omar, é um mergulho nos conflitos familiares, nas tensões culturais e na formação da identidade individual e coletiva.
Enredo e personagens
Narrado em primeira pessoa por um personagem inicialmente enigmático, que só mais adiante revela sua verdadeira ligação com a família central da história, o romance acompanha a trajetória da família de Halim e Zana, imigrantes libaneses que se estabeleceram em Manaus e tiveram três filhos: os gêmeos Yaqub e Omar, e uma filha que morre ainda bebê. A relação entre os gêmeos é marcada desde cedo por tensões profundas, geradas, em parte, pelas diferenças de personalidade, mas também alimentadas pelo tratamento desigual dado pelos pais – em especial pela mãe, Zana, que demonstra preferência por Omar, o filho boêmio e rebelde, em detrimento de Yaqub, o mais introspectivo e disciplinado.
Esse favoritismo, junto a um incidente traumático ocorrido na adolescência – uma briga em que Omar fere gravemente Yaqub no rosto – serve como ponto de ruptura para os irmãos e catalisador para toda a tragédia familiar que se desenrola ao longo das décadas seguintes. Após o episódio, Yaqub é mandado para o Líbano, onde permanece por cinco anos. Quando retorna, a distância entre os dois é irreparável, e a presença dos dois na mesma casa transforma o lar dos pais em um campo de batalha silencioso.
Temas centrais
A história é permeada por temas universais como a identidade, o pertencimento, a memória, o exílio, o ressentimento e a culpa. Hatoum trabalha com maestria a questão da alteridade por meio dos gêmeos, que simbolizam não apenas opostos psicológicos, mas também forças sociais e culturais em conflito. Omar representa a recusa das normas, o hedonismo e a irresponsabilidade, enquanto Yaqub encarna a racionalidade, o trabalho e a repressão emocional.
Outro aspecto importante é o papel das origens culturais. A família libanesa é retratada como dividida entre a manutenção de tradições orientais e a assimilação aos costumes brasileiros. Essa dualidade cultural aparece tanto nos hábitos da casa quanto nas relações interpessoais, criando uma espécie de exílio interno em que os personagens vivem entre dois mundos, sem se sentir plenamente pertencentes a nenhum.
A figura materna, Zana, é particularmente complexa. Ela não é apenas o centro afetivo da casa, mas também o elemento desestabilizador da relação entre os filhos. Sua recusa em aceitar a separação dos gêmeos e sua tentativa de manter a família unida a qualquer custo acabam tendo efeito contrário, gerando mais mágoa e afastamento. O pai, Halim, é uma figura passiva, quase apagada, que tenta evitar os conflitos mas não tem força para impedir a destruição da família.
Estilo e linguagem
A prosa de Hatoum é elegante e comedida, marcada por uma escrita introspectiva, rica em imagens e referências culturais. O autor recorre constantemente ao fluxo de memória e à fragmentação narrativa, construindo um enredo que vai sendo montado pouco a pouco, como um quebra-cabeça emocional. A linguagem é lírica, mas sem exageros. Há um equilíbrio entre o poético e o concreto, o que torna a leitura fluida, apesar da densidade dos temas tratados.
A cidade de Manaus, com sua multiplicidade étnica e sua posição geográfica única, é quase um personagem da narrativa. Hatoum pinta a capital amazonense com tintas realistas, mostrando sua transformação urbana e social ao longo das décadas. É nesse espaço de encontros e desencontros que se desenrola o drama da família, em uma constante tensão entre o passado e o presente.
Intertextualidade e simbolismo
Dois Irmãos também dialoga com diversas tradições literárias. É possível perceber ecos da tragédia grega (com seus temas de destino e conflito fraterno), da literatura bíblica (como os arquétipos de Caim e Abel), além da tradição modernista brasileira que explora as identidades fragmentadas e os dilemas da formação nacional.
O simbolismo dos gêmeos como metonímia da fragmentação do eu e da sociedade aparece com força ao longo de toda a narrativa. Não há exatamente vilões ou heróis; os personagens são ambíguos, movidos por paixões, ressentimentos e desejos contraditórios. O narrador, ele mesmo fruto de uma história mal resolvida no seio daquela família, não é neutro, o que reforça a complexidade da narrativa e obriga o leitor a questionar constantemente a versão dos fatos apresentada.
Adaptações e recepção crítica
Dois Irmãos foi amplamente elogiado pela crítica e recebeu importantes prêmios literários no Brasil. O romance ganhou adaptações para os quadrinhos (por Fábio Moon e Gabriel Bá) e também para a televisão, na minissérie homônima da Rede Globo em 2017, dirigida por Luiz Fernando Carvalho, o que contribuiu para popularizar ainda mais a obra.
A capacidade do livro de trabalhar temas familiares e universais, aliados a uma ambientação rica e uma linguagem sofisticada, torna-o uma leitura fundamental para quem busca compreender as complexidades das relações humanas, das origens culturais e da memória.
Conclusão
Dois Irmãos é uma obra de grande profundidade emocional e literária, que articula com rara sensibilidade os dramas individuais e coletivos de uma família marcada por disputas fraternas e legados culturais conflitantes. Milton Hatoum, com sua prosa contida e poética, oferece ao leitor uma narrativa que transcende o tempo e o espaço, fazendo da história de uma família libanesa em Manaus um espelho das relações humanas em qualquer parte do mundo.
Ao final da leitura, fica a impressão de que os conflitos mais intensos não são necessariamente os que ocorrem entre inimigos declarados, mas entre aqueles que deveriam se amar. Dois Irmãos nos lembra que, dentro das famílias, o amor e o ódio muitas vezes caminham lado a lado — e que as feridas emocionais, uma vez abertas, nem sempre se curam com o tempo.
Até mais!
Tête-à-Tête

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