Publicada em 1975, a coletânea de contos Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, é um marco na literatura brasileira pela sua abordagem crua, violenta e implacavelmente realista da sociedade urbana. Com uma linguagem seca e direta, o autor desconstrói qualquer ideia de otimismo ou esperança ingênua ao retratar a marginalidade, a brutalidade e o vazio moral que permeiam a vida de seus personagens — figuras excluídas, cínicas, desesperadas ou simplesmente amoralmente adaptadas ao caos das grandes cidades.
O livro foi censurado logo após seu lançamento, durante os anos de chumbo da ditadura militar, sob a alegação de “ofensa à moral e aos bons costumes”. Essa censura, longe de silenciar a obra, a consagrou como uma das mais contundentes denúncias da hipocrisia social e do autoritarismo que marcaram aquele período da história brasileira. Mais do que um ataque ao regime, os contos de Feliz Ano Novo oferecem um espelho desconfortável da alma urbana e da violência entranhada em todas as camadas da sociedade.
Uma literatura da violência
Os contos de Feliz Ano Novo giram, em sua maioria, em torno de crimes, situações-limite, perversões e impasses éticos. A violência, em Fonseca, não é decorativa ou gratuita: ela é a essência da condição humana em um mundo sem valores firmes. O crime, o assassinato, o estupro, o roubo — nada disso é apresentado como exceção, mas como parte da rotina da vida nas grandes cidades brasileiras. E o mais perturbador: muitas vezes, os protagonistas são narradores em primeira pessoa que não demonstram arrependimento, culpa ou moralidade. O leitor é forçado a habitar a mente de criminosos, psicopatas, corruptos ou simplesmente indiferentes.
Essa inversão dos papéis tradicionais — onde o leitor se identifica com o “vilão” ou é obrigado a enxergar o mundo por seus olhos — é um dos elementos mais impactantes do estilo fonsequiano. Em vez de oferecer conforto ou esperança, ele revela um mundo em que a lógica da força prevalece, onde a lei é apenas mais uma máscara da violência institucionalizada, e onde o indivíduo está reduzido ao seu instinto mais cru: sobreviver, dominar, aniquilar.
Conto a conto: um panorama do abismo
O conto que dá nome ao livro, Feliz Ano Novo, talvez seja o mais emblemático. Nele, três criminosos de classe baixa invadem uma festa da alta sociedade na virada do ano. A invasão não é apenas física, mas simbólica: é a entrada brutal da realidade marginalizada no mundo burguês. O conto termina em uma explosão de violência e ironia, como se dissesse que qualquer ilusão de paz, celebração ou renovação é uma farsa quando se vive num país marcado por desigualdade extrema e indiferença social. O “feliz ano novo” torna-se uma provocação cruel.
Outros contos seguem a mesma linha de brutalidade. Em Passeio Noturno, dividido em duas partes, um executivo aparentemente respeitável passa as noites matando desconhecidos com seu carro. A frieza com que ele narra seus crimes expõe a desconexão entre aparência e essência, entre civilização e barbárie — um dos temas centrais de Fonseca.
Em O Cobrador, outro conto muito conhecido do autor, temos um personagem que decide “cobrar” da sociedade tudo o que lhe foi negado. Ele sai cometendo crimes com a justificativa de que está fazendo justiça, mas o que vemos é apenas mais um ciclo de violência que não redime ninguém. O conto é uma crítica feroz à desigualdade social e à hipocrisia das classes dominantes, mas também questiona a validade de qualquer discurso revolucionário que se baseie apenas na destruição.
Outros contos, como O Outro, A Força Humana, Faca e Feliz Aniversário, reforçam essa estética do choque e do desconforto. Em todos eles, o autor manipula a linguagem de forma a reproduzir a frieza e a banalidade com que a violência se instala no cotidiano. Não há sentimentalismo, redenção ou lições morais — apenas o retrato cru de um mundo em colapso.
Estilo e linguagem
Rubem Fonseca é um mestre da concisão. Sua linguagem é precisa, objetiva, quase cirúrgica. Os diálogos são realistas, secos, e muitas vezes carregados de ironia. O narrador — muitas vezes em primeira pessoa — fala com naturalidade sobre atos brutais, criando uma tensão desconcertante entre o tom banal e o conteúdo violento. Essa escolha estilística é central para o impacto dos contos: ao não “dramatizar” a violência, Fonseca a normaliza, expondo o quanto ela já está entranhada no cotidiano urbano.
O autor também emprega com frequência o fluxo de pensamento dos personagens, criando um efeito de intimidade perturbadora entre o leitor e figuras moralmente dúbias ou francamente abjetas. Em vez de denunciar ou explicar a violência, ele a apresenta como um dado da realidade — o que exige do leitor uma postura crítica ativa. É uma literatura que não oferece respostas, apenas perguntas incômodas.
Crítica social e ambiguidade moral
Embora não seja panfletário, Feliz Ano Novo é um livro profundamente político. Os contos expõem com clareza a estrutura de desigualdade social do Brasil, a inoperância das instituições, a repressão do Estado e a alienação das elites. Contudo, o autor evita maniqueísmos. Não há santos nem demônios em sua prosa — apenas seres humanos atravessados por impulsos contraditórios e por um contexto social brutalizante.
A violência, nesse sentido, não é apenas física, mas simbólica, social, psicológica. Está nos lares, nas empresas, nas relações interpessoais, nas palavras e nos silêncios. Fonseca revela um Brasil em que os laços sociais estão desfeitos, em que a ética foi substituída pela lei do mais forte, e onde qualquer ideal de justiça ou progresso soa cínico diante da realidade.
A recepção e o legado
A recepção crítica de Feliz Ano Novo foi marcada por polêmicas. A censura imposta à obra durante o regime militar só contribuiu para aumentar sua notoriedade. Alguns críticos da época questionaram a crueza da narrativa e a “gratuidade” da violência, mas com o tempo, o livro foi reconhecido como um retrato lúcido — ainda que cruel — de um país à beira da barbárie.
Rubem Fonseca influenciou toda uma geração de escritores brasileiros e latino-americanos. Seu estilo impactou nomes como Patrícia Melo, Luiz Ruffato, Marçal Aquino e outros autores interessados em narrar a realidade urbana sob o prisma da violência e da marginalidade. Feliz Ano Novo consolidou o autor como um dos grandes renovadores da literatura nacional, rompendo com o lirismo das gerações anteriores e abrindo espaço para uma prosa mais direta, contemporânea e inquietante.
Considerações finais
Feliz Ano Novo não é um livro fácil ou agradável. É uma obra feita para incomodar, para provocar, para tirar o leitor do conforto. Em tempos de crise ética, social e política, seus contos continuam ressoando com força e atualidade assustadora. Rubem Fonseca nos força a encarar o lado mais sombrio da condição humana, desafiando a ideia de que a literatura deve confortar ou educar. Para ele, o papel do escritor é revelar o que está oculto — e, muitas vezes, o que está oculto é a selvageria sob a máscara da civilização.
Ao final da leitura, a impressão que fica é a de ter atravessado uma zona de guerra — não uma guerra entre exércitos, mas entre pessoas comuns, atravessadas por violência, desejo e ausência de sentido. Feliz Ano Novo é, nesse sentido, um grito desesperado de lucidez em meio à barbárie. Uma obra que permanece urgente, necessária e, acima de tudo, profundamente humana.
Até mais!
Tête-à-Tête

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