No ensaio “Para uma crítica da violência” (Zur Kritik der Gewalt, 1921), o filósofo alemão Walter Benjamin empreende uma análise rigorosa, densa e conceitualmente desafiadora sobre a relação entre direito, justiça e violência. Publicado em um contexto de intensas tensões sociais e políticas na Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial, o texto se destaca não apenas por sua originalidade filosófica, mas também por sua tentativa de compreender a legitimidade da violência em sua relação com o aparato jurídico moderno. Ao contrário de abordagens meramente sociológicas ou morais, Benjamin propõe uma crítica filosófica e teológica do fenômeno da violência, tornando o ensaio uma obra fundamental para os debates sobre o poder, a soberania e a justiça no século XX.


A distinção entre fins e meios

Logo no início do ensaio, Benjamin se propõe a romper com a maneira tradicional de se analisar a violência — que geralmente se limita a julgar os meios violentos em função dos fins que perseguem. Em vez disso, ele introduz a necessidade de uma análise autônoma dos meios, isto é, de uma crítica da violência enquanto tal, independentemente de sua eficácia ou dos objetivos que pretende alcançar. Para tanto, Benjamin distingue entre dois tipos principais de violência: a violência fundadora de direito e a violência conservadora de direito.

A violência fundadora de direito é aquela que cria uma nova ordem jurídica — como, por exemplo, a revolução que instaura um novo regime. Já a violência conservadora de direito é aquela que protege e mantém o direito já instituído — como a atuação policial ou judicial. Ambas, apesar de aparentemente opostas, estão interligadas e dependem uma da outra: o direito se estabelece pela violência e se conserva por ela.


O Estado e o monopólio da violência

Benjamin se antecipa a teorias posteriores sobre o monopólio estatal da violência, como as desenvolvidas por Max Weber, ao argumentar que o direito não apenas se legitima pela violência, mas subordina qualquer outra forma de violência à sua própria lógica. Assim, o Estado se torna o único detentor legítimo da violência e, ao mesmo tempo, o guardião de sua própria perpetuação.

Ele examina o caso das greves como exemplo: o Estado tolera a greve econômica — porque está dentro do jogo do direito trabalhista —, mas reprime a greve política, pois esta questiona a própria estrutura do poder estatal. Com isso, Benjamin mostra que o direito não é neutro, mas uma forma de conter ou anular a violência que ameaça sua autoridade.


A crítica da violência como estrutura mítica

Um dos momentos mais profundos do ensaio é quando Benjamin articula sua crítica da violência à noção de mito. A violência fundadora de direito, para ele, é violência mítica — ou seja, uma forma de poder que se impõe como destino, como fatalidade, como sacralização do poder bruto. Essa violência mítica tem como exemplo clássico a figura de Crômio, na mitologia grega, que mata para instaurar a autoridade dos deuses — ou seja, mata para criar uma nova ordem.

Ao contrário da violência mítica, Benjamin propõe a ideia de uma violência divina, que rompe com o ciclo de fundação e conservação do direito. A violência divina não cria novo direito, nem se justifica por ele: é uma violência pura, justa, redentora, que anula o poder como tal. Para Benjamin, essa violência é exemplificada em gestos como o de Jesus expulsando os vendilhões do templo — uma ação sem intenção de estabelecer nova ordem jurídica, mas de restaurar a justiça em sua forma mais radical.


Justiça versus direito

Em sua abordagem, Benjamin traça um abismo entre justiça e direito. Enquanto o direito está sempre atrelado à violência — seja para se instaurar, seja para se manter —, a justiça só pode emergir fora da lógica jurídica, fora do campo da instrumentalização da violência. A violência jurídica é sempre meio para um fim, enquanto a justiça verdadeira se manifesta como fim em si mesma, muitas vezes rompendo a lógica utilitária ou institucional.

Essa distinção é fundamental para compreender o argumento central do ensaio: a verdadeira crítica da violência deve ser uma crítica da forma como o direito sequestra a justiça, a reduzindo a um jogo de interesses, regras e punições.


A linguagem da violência e o silêncio da justiça

Outro elemento notável no texto é o tratamento da linguagem. Benjamin, influenciado pela filosofia da linguagem e pela tradição judaica, sugere que a violência comunica, mas o faz de maneira ambígua e destrutiva. A violência mítica é falante, arrogante, quer marcar, dominar, mostrar sua força. Já a violência divina — a justiça — é silenciosa, sem linguagem, sem pretensão de poder. Nesse contraste, Benjamin aponta para um ideal de justiça que dispensa a palavra, a retórica e o aparato jurídico, porque não precisa se justificar. Ela é, e por isso basta.


Atualidade do pensamento benjaminiano

Embora escrito há mais de um século, “Para uma crítica da violência” continua profundamente atual. Em tempos de crescente autoritarismo, militarização das polícias, judicialização da política e violência estatal sistemática, Benjamin nos oferece uma chave crítica para entender como o direito e a violência se entrelaçam na manutenção do poder. Mais ainda: ele nos obriga a pensar a justiça fora dos marcos legais, a imaginar formas de ação e resistência que não apenas repliquem a lógica do poder, mas que apontem para sua superação radical.

Além disso, em um mundo em que o discurso jurídico muitas vezes se confunde com a moral e a política, o texto de Benjamin oferece um alerta contra a naturalização da violência como parte inevitável do jogo social. A pergunta que atravessa o ensaio é direta e incômoda: é possível uma justiça que não esteja contaminada pela violência?


Considerações finais

“Para uma crítica da violência” é um texto difícil, denso e exigente. Não oferece respostas fáceis nem soluções práticas. Mas é exatamente essa sua força: ele obriga o leitor a desconfiar das categorias tradicionais, a repensar conceitos como justiça, poder, direito e violência em profundidade. Ao colocar em xeque o próprio fundamento do direito moderno, Walter Benjamin nos lembra que a crítica verdadeira não é apenas aquela que analisa as formas do poder, mas aquela que ousa imaginar um mundo sem ele.

Essa ousadia — filosófica, teológica e política — é o que faz do ensaio de 1921 uma das mais potentes e provocadoras reflexões do século XX. Um texto que incomoda, ilumina e instiga, exatamente como toda boa filosofia deve ser.


Até mais!

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