Publicado em 1973, em plena ditadura militar brasileira, As Meninas é um dos romances mais importantes da escritora paulista Lygia Fagundes Telles, considerada uma das maiores vozes femininas da literatura nacional. A obra conquistou o Prêmio Jabuti, o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Pen Clube do Brasil, e é reconhecida por seu vigor estilístico, sua profundidade psicológica e seu engajamento com questões sociais, políticas e existenciais.
Trata-se de um romance de formação que acompanha o cotidiano e os dilemas de três jovens universitárias — Lorena, Lia e Ana Clara — que dividem um pensionato feminino em São Paulo nos anos 1970. Em um país sob censura, repressão e autoritarismo, a juventude dessas personagens se vê cercada por conflitos internos e externos, que refletem as tensões de uma época marcada por contradições sociais, políticas e morais.
Enredo
O enredo de As Meninas se constrói de maneira fragmentada, sem linearidade cronológica. A narrativa é dividida em blocos que alternam entre o ponto de vista das três protagonistas, mesclando fluxo de consciência, lembranças, diálogos internos e cenas do presente. A linguagem reflete o ritmo acelerado da juventude urbana, os dilemas existenciais e o ambiente de opressão política e moral da época.
As três personagens principais têm perfis e origens bastante distintos:
- Lorena é filha da elite tradicional paulista. Católica, romântica e sonhadora, vive em um mundo idealizado, onde espera um amor platônico de um médico casado, com quem mantém uma relação ambígua. Representa a alienação e o conflito entre o desejo e os valores conservadores que herdou da família.
- Lia é uma jovem engajada politicamente, de classe média, militante contra a ditadura. Independente, racional e determinada, vive sob constante risco por sua atuação política. Sua narrativa traz a tensão da clandestinidade e o medo constante da repressão do regime militar.
- Ana Clara é a mais trágica das três. De origem humilde, marcada por um passado de abuso e violência, tenta escapar da miséria por meio da beleza e do envolvimento com homens ricos. Vive entre a prostituição, o uso de drogas e um desejo frustrado de redenção espiritual.
O enredo gira em torno dos encontros e desencontros dessas jovens em um ambiente marcado pela repressão política, a opressão patriarcal e a busca por identidade. Cada uma à sua maneira representa um recorte da juventude feminina da época, expressando diferentes formas de resistência, submissão e conflito.
Personagens principais
- Lorena: Idealista, melancólica, vive um conflito entre o mundo de fantasias e a realidade opressora. Representa a juventude burguesa desiludida e perdida em meio a valores morais decadentes.
- Lia: Combativa e engajada, Lia representa a juventude politizada e resistente à ditadura. É crítica, lúcida, mas também carrega uma angústia profunda diante da violência e das perdas.
- Ana Clara: Personagem marcada por dor, abandono e autodestruição. Simboliza a juventude marginalizada, que vive à margem da sociedade e não encontra espaço nem voz.
Cada uma dessas figuras traz consigo temas importantes: Lorena e a repressão sexual e afetiva; Lia e a repressão política; Ana Clara e a exclusão social e emocional.
Temas centrais
Ditadura militar e repressão política
O livro foi escrito em um dos períodos mais duros da ditadura brasileira, e a opressão do regime está sempre presente, sobretudo por meio da personagem Lia. Prisões arbitrárias, torturas, perseguições e o medo da delação são tratados com dureza e verossimilhança. A militância de esquerda aparece como forma de resistência, mas também como espaço de perda e sacrifício.
Feminismo e condição da mulher
As Meninas é, acima de tudo, um romance profundamente feminino. As três protagonistas vivem em uma sociedade dominada por padrões patriarcais que restringem sua liberdade, sua sexualidade e suas escolhas. Lygia Fagundes Telles denuncia, com sutileza e profundidade, o machismo, a violência doméstica, o abuso sexual, o aborto clandestino e a marginalização da mulher.
Identidade e crise existencial
As personagens vivem intensas crises de identidade, típicas da juventude. Buscam um sentido para suas vidas, mas se veem presas a um mundo que não lhes oferece futuro. O livro retrata esse impasse existencial com intensidade psicológica, explorando a confusão entre desejo, medo, amor, morte e política.
Amizade e solidariedade feminina
Apesar das diferenças sociais, políticas e emocionais, as três jovens compartilham um espaço de intimidade e cumplicidade no pensionato. A amizade entre elas é o fio condutor do romance, funcionando como refúgio e espaço de acolhimento em meio ao caos do mundo exterior.
Estilo e linguagem
O estilo de Lygia Fagundes Telles é marcante por sua prosa lírica, introspectiva e carregada de sensibilidade psicológica. Em As Meninas, a autora utiliza técnicas modernas como:
- Fluxo de consciência: O texto muitas vezes imita o pensamento das personagens, com frases entrecortadas, repetições e associações livres. Isso aproxima o leitor do universo íntimo de cada jovem.
- Narrativa fragmentada: A história não segue uma ordem cronológica. Em vez disso, é construída a partir de memórias, reflexões e cenas que vão se sobrepondo como peças de um quebra-cabeça.
- Polifonia: A alternância entre as vozes narrativas de Lorena, Lia e Ana Clara dá ao romance uma riqueza de pontos de vista, revelando as diferentes formas de viver e resistir na sociedade brasileira da época.
A linguagem é ao mesmo tempo culta e permeada por registros orais e gírias da juventude, o que reforça a autenticidade das personagens.
Contexto histórico e social
As Meninas foi lançado durante a vigência do AI-5 (Ato Institucional n.º 5), período de maior repressão do regime militar, iniciado em 1968. Nesse cenário, livros, músicas, peças de teatro e jornais sofriam censura, e intelectuais, artistas e militantes eram perseguidos.
O romance de Lygia é uma forma de resistência silenciosa, uma crítica disfarçada sob a ficção. A autora denuncia a violência estatal, a hipocrisia das elites e o sofrimento das mulheres, sem abrir mão da linguagem artística e da construção poética.
Atualidade da obra
Mais de 50 anos após sua publicação, As Meninas continua incrivelmente atual. Os dilemas enfrentados por Lorena, Lia e Ana Clara — como o autoritarismo, a desigualdade de gênero, a repressão sexual, o abandono e a luta por voz e espaço — ainda são vividos por milhares de mulheres brasileiras.
A obra se destaca por antecipar discussões que se tornaram centrais no feminismo contemporâneo, como o direito à autonomia sobre o próprio corpo, a denúncia da violência de gênero, a liberdade afetiva e a sororidade entre mulheres.
Além disso, a forma como o romance retrata a juventude diante da repressão política e da ausência de perspectivas ressoa com o sentimento de muitas gerações, em diferentes contextos históricos.
Conclusão
As Meninas é uma obra essencial da literatura brasileira, tanto por seu valor literário quanto por sua relevância histórica e social. Lygia Fagundes Telles constrói um romance denso, lírico e corajoso, que mergulha na alma de três jovens mulheres em busca de sentido, liberdade e justiça.
Com uma linguagem refinada e moderna, a autora revela as dores, os desejos e as lutas de uma geração marcada pelo silêncio e pela repressão. Ao dar voz a essas meninas, Lygia oferece ao leitor um retrato pungente da juventude feminina em tempos sombrios — um retrato que continua a ecoar em pleno século XXI.
Leitura indispensável para quem deseja compreender não apenas a literatura, mas também a condição da mulher, a história recente do Brasil e os desafios da juventude diante de um mundo em crise.
Até mais!
Tête-à-Tête

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