O termo narcisismo está em alta. Usado com frequência em conversas informais, redes sociais e manchetes de jornais, ele costuma descrever pessoas egocêntricas, vaidosas ou emocionalmente abusivas. Mas o conceito é muito mais complexo do que um simples traço de personalidade. Ele tem raízes profundas na psicanálise, especialmente no trabalho de Sigmund Freud, e foi posteriormente desenvolvido por diversos outros teóricos, ganhando nuances clínicas, sociais e até culturais.
Neste artigo, vamos explorar o narcisismo sob a ótica da psicologia e da psicanálise, desde seu surgimento com Freud até suas reformulações por autores como Heinz Kohut, Otto Kernberg e Jacques Lacan. Vamos também discutir sua presença no mundo contemporâneo — cada vez mais mediado por imagens, autoexposição e validação externa.
As raízes do termo: o mito de Narciso
A palavra “narcisismo” vem do mito grego de Narciso, o belo jovem que, ao rejeitar todos os pretendentes, foi condenado a apaixonar-se pela própria imagem refletida na água. Incapaz de se afastar do espelho natural, Narciso definha até morrer — consumido por sua própria contemplação.
Esse mito simboliza o autoencantamento destrutivo — amar a si mesmo de forma tão intensa que se perde o contato com o mundo externo. Freud retoma essa história não apenas como metáfora poética, mas como modelo clínico para entender parte da formação do eu.
Freud e o conceito de narcisismo
Foi em 1914, no artigo “Introdução ao narcisismo”, que Freud formalizou o conceito dentro da teoria psicanalítica. Para ele, o narcisismo não era apenas uma patologia, mas uma fase natural do desenvolvimento psíquico.
Duas formas de narcisismo segundo Freud:
- Narcisismo primário
- Presente nos primeiros estágios da vida, quando o bebê ainda não diferencia o eu do outro.
- O libido (energia psíquica do desejo) está investido exclusivamente no próprio eu.
- É uma fase necessária para a formação da autoestima e da estrutura do ego.
- Narcisismo secundário
- Ocorre quando o libido, antes voltado ao mundo externo, regressa ao eu.
- Pode surgir em momentos de doença, frustração amorosa ou trauma, e pode se tornar patológico.
Freud via o narcisismo como um equilíbrio dinâmico entre investir energia no próprio ego e nos objetos externos (pessoas, ideias, causas). Quando esse equilíbrio se rompe, surgem os distúrbios.
Narcisismo patológico e a clínica
Com o avanço da psicanálise, o narcisismo começou a ser estudado também como estrutura de personalidade — especialmente em pacientes que não se enquadravam nas neuroses clássicas (como histeria ou obsessão), mas apresentavam dificuldades com empatia, autoestima inflada ou frágil, e relacionamentos superficiais.
Dois autores se destacam nesse campo: Heinz Kohut e Otto Kernberg.
Heinz Kohut: o narcisismo como trauma do self
Kohut, psicanalista americano de origem austríaca, reformulou a ideia de narcisismo ao desenvolver a chamada psicologia do self. Para ele, os distúrbios narcísicos não eram apenas falhas morais ou regressões, mas consequências de falhas ambientais precoces — especialmente no espelhamento oferecido pelos pais.
Principais ideias de Kohut:
- O bebê precisa ser validado, admirado e reconhecido para construir um self coeso.
- Quando esse espelhamento falha, a criança desenvolve uma autoimagem grandiosa e frágil, como defesa.
- O narcisismo patológico, então, é uma tentativa de manter a coesão psíquica diante do abandono emocional.
Kohut propôs que o tratamento deveria focar na empatia do analista e no fortalecimento do self, em vez de apenas interpretar as defesas inconscientes.
Otto Kernberg: narcisismo maligno e relações objetais
Otto Kernberg, também psicanalista, partiu de outra vertente. Ele integrou psicanálise com psicologia do ego e psiquiatria, e descreveu o que chamou de transtorno de personalidade narcisista — uma estrutura mais rígida e defensiva.
Características do narcisismo patológico segundo Kernberg:
- Grandiosidade exagerada.
- Falta de empatia real.
- Inveja crônica.
- Dificuldade em manter relações profundas.
- Oscilação entre idealização e desvalorização dos outros.
Para Kernberg, o narcisismo patológico decorre de relações objetais precoces frustradas, nas quais a criança introjeta imagens confusas de amor e ódio, levando à construção de um ego frágil sustentado por defesas rígidas.
Sua abordagem clínica é mais confrontativa do que a de Kohut, e visa reintegrar as partes fragmentadas da personalidade por meio do vínculo terapêutico.
Jacques Lacan e o espelho do ego
O francês Jacques Lacan trouxe uma perspectiva única ao tema, ao propor o conceito de estádio do espelho. Para ele, entre os 6 e 18 meses, o bebê reconhece sua imagem no espelho e forma uma imagem idealizada de si mesmo — o “eu ideal”.
Mas esse eu é uma ficção necessária: o sujeito passa a se identificar com essa imagem externa, criando um ego que é, desde o início, alienado e imaginário.
Lacan vê o narcisismo como estrutural: o sujeito nunca é totalmente dono de si, pois está preso à imagem idealizada que acredita ser. Daí surgem tanto o desejo de reconhecimento quanto as feridas narcísicas ao não ser admirado, visto ou amado.
Narcisismo na era digital: redes sociais e o culto à imagem
Embora os grandes teóricos tenham formulado suas ideias no século XX, o debate sobre o narcisismo ganhou novo fôlego no século XXI, especialmente com o avanço da cultura digital e das redes sociais.
O psicólogo Christopher Lasch, em A Cultura do Narcisismo (1979), já previa uma sociedade em que o individualismo, o consumo e a busca por reconhecimento tornariam as relações mais superficiais.
Hoje, em tempos de likes, selfies, seguidores e filtros, muitos analistas veem um cenário propício para o crescimento de traços narcísicos:
- Exposição constante da imagem pessoal.
- Busca compulsiva por validação externa.
- Criação de “eus” performáticos que escondem inseguranças profundas.
- Relacionamentos líquidos, baseados na aparência e no status.
A fronteira entre narcisismo saudável (afirmação da identidade) e patológico (fragilidade oculta sob grandiosidade) se torna cada vez mais tênue em uma sociedade mediada por algoritmos.
Narcisismo saudável vs. patológico
É importante lembrar que ter traços narcisistas não significa ter um transtorno. Todos precisamos de uma dose de amor-próprio, autoconfiança e reconhecimento. Isso é o que se chama narcisismo saudável.
O problema surge quando:
- A autoestima depende exclusivamente da aprovação dos outros.
- Há dificuldade crônica em reconhecer limites e falhas pessoais.
- O sujeito explora os outros para se sentir superior.
- A pessoa se isola emocionalmente para proteger um ego frágil.
A psicologia contemporânea busca caminhos terapêuticos que integrem o self, fortaleçam a autoestima real e promovam relações mais autênticas.
Um espelho que revela mais do que parece
O narcisismo é um conceito fascinante porque diz respeito tanto ao indivíduo quanto à sociedade. Ele revela como construímos nossa identidade, como lidamos com nossos desejos e como buscamos ser vistos e amados. Freud, Kohut, Kernberg e Lacan abriram caminhos diferentes para entender essa dinâmica — ora como fase do desenvolvimento, ora como estrutura clínica, ora como ilusão imaginária.
Hoje, em tempos de hiperconexão e imagens idealizadas, o narcisismo continua sendo um espelho — mas também um convite à reflexão: o quanto do que mostramos aos outros é verdadeiramente nosso? E o quanto estamos prontos para olhar para nós mesmos sem filtros?
Entender o narcisismo é mais do que estudar um transtorno — é compreender as contradições mais íntimas da condição humana.
Fontes consultadas:
- Freud, S. Introdução ao Narcisismo (1914)
- Kohut, H. The Analysis of the Self (1971)
- Kernberg, O. Transtornos graves da personalidade (1984)
- Lacan, J. Escritos (1953-1966)
- Lasch, C. A Cultura do Narcisismo (1979)
- Gabbard, G. Psiquiatria Psicodinâmica na Prática Clínica (2020)
Até mais!
Tête-à-Tête

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