Publicado em 1932, Menino de Engenho é o romance de estreia de José Lins do Rego e o primeiro volume do chamado Ciclo da Cana-de-Açúcar, que inclui ainda obras como Doidinho, Banguê e Usina. Através de uma linguagem simples, lírica e marcadamente regional, o autor mergulha o leitor na infância de um menino criado em um engenho de açúcar no interior da Paraíba, abordando temas como memória, sociedade patriarcal, desigualdade social, violência e a passagem da infância à vida adulta.


Enredo e estrutura

O romance é narrado em primeira pessoa por Carlos Melo, um menino órfão de pai, que é enviado para viver com o avô materno, o Coronel José Paulino, no engenho Santa Rosa. A obra se apresenta como uma espécie de romance de formação ou de memórias, onde o narrador adulto revisita suas lembranças de infância, construindo um relato nostálgico e ao mesmo tempo crítico da sociedade rural nordestina no início do século XX.

Carlos, inicialmente criado em um ambiente mais urbano e com valores distintos, é inserido no universo patriarcal, autoritário e violento do engenho. A partir daí, ele vai sendo gradualmente moldado por esse novo mundo, onde a figura do avô, o coronel, exerce poder absoluto sobre a terra, os escravos libertos, os agregados e até os próprios familiares.

A narrativa não tem uma trama central muito definida, mas é construída por meio de episódios e recordações que formam um mosaico da infância do protagonista. Entre festas religiosas, castigos severos, brincadeiras com os meninos do engenho, primeiros desejos sexuais e cenas de brutalidade social, o leitor acompanha a transformação de Carlos e o amadurecimento de seu olhar sobre o mundo.


Personagens principais

  • Carlos Melo: protagonista e narrador, é o menino sensível e observador que representa o olhar de quem transita entre dois mundos — o da infância e o da maturidade, o urbano e o rural, o sensível e o brutal.
  • Coronel José Paulino: avô do menino e figura central no engenho. Representa a autoridade do patriarcado, dono da terra e da vida dos que vivem nela.
  • Sinhazinha: tia do protagonista, mulher doce e religiosa que contrasta com a dureza do ambiente.
  • Meninos do engenho: colegas de infância de Carlos, muitos deles filhos de trabalhadores e agregados, mostram o abismo social dentro da própria infância.
  • Negros e agregados: personagens como Maria da Luz e Zé Firmino revelam a persistência das relações de poder herdadas da escravidão.

Temas centrais

Infância e formação

A infância em Menino de Engenho é retratada de forma ambígua. Por um lado, é espaço de liberdade, descoberta e prazer; por outro, é marcada por perdas, violência e desigualdade. A passagem da inocência para a consciência da realidade é um dos eixos centrais da narrativa. Carlos, ao crescer no engenho, começa a perceber o mundo cruel e desigual que o cerca, mesmo que muitas vezes de maneira inconsciente.

Sociedade patriarcal e autoritária

O engenho é uma metáfora do Brasil patriarcal, onde o poder está centralizado na figura do coronel. A estrutura familiar é rígida, baseada em obediência, honra e tradição. Mulheres são submissas, os negros e pobres ocupam posições subalternas, e os castigos físicos são comuns.

Desigualdade e herança da escravidão

Mesmo após a abolição, o engenho permanece como um espaço onde as relações sociais continuam sendo marcadas por exploração e racismo. Os ex-escravizados vivem como agregados, em condições precárias, sem acesso a direitos ou igualdade. Carlos observa essas relações, mas, como membro da elite rural, também é moldado por elas.

Memória e nostalgia

Há um forte tom nostálgico no texto, típico de romances de memória. O narrador, já adulto, olha para sua infância com um misto de saudade e crítica. A linguagem lírica contribui para essa atmosfera, tornando a narrativa ao mesmo tempo encantadora e melancólica.


Estilo e linguagem

A prosa de José Lins do Rego é marcada por uma linguagem simples, coloquial e profundamente sensorial. O autor utiliza recursos descritivos com maestria, criando imagens vivas do sertão nordestino, da paisagem dos engenhos, das festas populares e dos rituais religiosos.

A escrita flui como uma conversa íntima com o leitor, como se Carlos estivesse confidenciando suas lembranças com espontaneidade e emoção. Isso reforça o caráter autobiográfico da obra — embora ficcional, ela é fortemente inspirada nas experiências pessoais do autor.

Outro traço estilístico marcante é o uso da oralidade e do vocabulário regional, que confere autenticidade aos diálogos e ajuda a construir a ambientação local.


Contexto histórico e literário

Menino de Engenho faz parte da chamada segunda fase do modernismo brasileiro, também conhecida como fase regionalista ou social, que se desenvolveu a partir da década de 1930. Nesse período, autores como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Jorge Amado passaram a retratar a realidade das regiões menos favorecidas do Brasil, sobretudo o Nordeste, com um olhar crítico e engajado.

José Lins do Rego insere-se nesse contexto ao apresentar o engenho não como espaço bucólico e idealizado, mas como símbolo de um sistema decadente e violento. Sua obra denuncia as injustiças sociais e os resquícios da escravidão, mesmo sem assumir um discurso panfletário.


Atualidade da obra

Mesmo ambientado em um tempo passado, Menino de Engenho continua atual por abordar temas universais e recorrentes na sociedade brasileira: as desigualdades sociais, o racismo estrutural, a violência contra crianças e mulheres, a educação deficiente e a concentração de poder nas mãos de poucos.

Além disso, o romance oferece uma reflexão sobre o processo de formação do indivíduo, mostrando como o meio social e familiar influencia profundamente a construção da identidade e dos valores.


Conclusão

Menino de Engenho é uma obra fundamental da literatura brasileira, tanto por seu valor estético quanto por seu conteúdo social. Com sensibilidade e autenticidade, José Lins do Rego nos oferece um retrato complexo da infância vivida em um mundo de contrastes — entre ternura e brutalidade, liberdade e opressão, inocência e despertar.

Ao narrar as lembranças de Carlos, o autor nos leva a refletir não apenas sobre o passado, mas sobre as estruturas sociais que ainda persistem no presente. É um livro que emociona, provoca e convida à reflexão — e que merece ser lido com atenção e sensibilidade.


Até mais!

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