Franz Kafka, autor tcheco de língua alemã e figura central da literatura do século XX, talvez jamais tenha imaginado o quanto sua obra seria profética ao tratar dos meandros da burocracia. Com romances como O Processo e O Castelo, Kafka criou um universo em que o indivíduo está constantemente submetido a sistemas impessoais, labirínticos e opressivos. A pergunta que nos propomos aqui é: se Kafka pudesse observar a burocracia do século XXI, o que ele diria?


A burocracia como um monstro invisível

Em O Processo, Josef K. é preso sem saber por quê, julgado por um tribunal inatingível e, ao fim, executado sem jamais compreender sua culpa. Já em O Castelo, o agrimensor K. tenta em vão obter reconhecimento oficial de seu cargo por parte de um castelo que representa uma estrutura de poder inalcançável. Em ambos os casos, a essência da burocracia é a mesma: opacidade, arbitrariedade e despersonalização.

No século XXI, embora tenhamos tecnologias avançadas, bancos de dados interligados e inteligência artificial, a sensação kafkiana permanece. Basta tentar resolver um problema com uma operadora de telefone, acessar um serviço público digital ou contestar uma cobrança indevida para experimentar a mesma impotência que os personagens de Kafka sentiam. A burocracia, agora vestida de modernidade, continua sendo uma força difusa, com rostos ocultos e responsabilidades diluídas.


A digitalização: libertação ou nova prisão?

É verdade que o século XXI trouxe ferramentas que prometem simplificar processos burocráticos. Assinaturas digitais, agendamentos online, documentos eletrônicos — tudo parece indicar uma jornada rumo à eficiência. Contudo, Kafka provavelmente não se deixaria enganar. Ele veria a digitalização como uma nova camada de complexidade, mais sofisticada, mas igualmente alienante.

A dependência de sistemas automatizados, chatbots e protocolos inflexíveis criou uma burocracia ainda mais impenetrável. Agora, não é apenas um carimbo ou um funcionário de plantão que nega um pedido, mas um “erro no sistema”, uma falha no CPF, ou um “campo obrigatório” que você não consegue preencher. Kafka veria nesses detalhes técnicos o novo rosto do absurdo: um emaranhado de códigos, senhas e validações que isolam ainda mais o indivíduo.


A ilusão da transparência

No mundo atual, fala-se muito em “transparência institucional”. Governos e empresas ostentam esse valor em seus sites, relatórios e campanhas de marketing. Mas o que significaria essa transparência para Kafka?

Ele provavelmente veria nela uma ironia cruel. Em sua obra, quanto mais o personagem tenta se aproximar do centro do poder ou obter clareza, mais distante e confuso tudo se torna. Da mesma forma, a transparência contemporânea muitas vezes é apenas superficial: temos acesso a dados, mas não a decisões; vemos números, mas não conseguimos entender quem realmente decide, e com base em quê.

Kafka, com seu olhar aguçado para as engrenagens invisíveis da autoridade, talvez enxergasse na retórica da transparência um novo disfarce para a opressão burocrática: um verniz de modernidade que encobre as mesmas estruturas labirínticas do passado.


A burocracia privada: o novo castelo corporativo

Um aspecto que Kafka talvez estranhasse — ou, mais provavelmente, acharia completamente coerente — é o crescimento da burocracia dentro do setor privado. Bancos, seguradoras, plataformas digitais, empresas de telefonia e até redes sociais criaram suas próprias estruturas de controle, muitas vezes mais intrincadas e opacas do que as dos Estados.

Hoje, para recuperar uma conta de e-mail, contestar uma cobrança por serviços não prestados ou simplesmente falar com um humano em vez de uma gravação, o indivíduo passa por etapas que lembram os corredores intermináveis de O Castelo. Kafka talvez observasse que o poder, no século XXI, descentralizou-se sem se humanizar. As grandes corporações tornaram-se os novos castelos, com seus próprios tribunais, seus próprios termos e condições, e sua própria lógica hermética.


O indivíduo fragmentado

Uma das angústias centrais nas obras de Kafka é a perda da identidade diante de uma máquina impessoal. Em A Metamorfose, Gregor Samsa acorda transformado em um inseto e, mesmo assim, continua se preocupando com o expediente e com sua posição dentro do sistema. No século XXI, o indivíduo também se vê fragmentado em números: CPF, login, ID de usuário, número do protocolo, código de verificação.

Kafka provavelmente diria que, mesmo diante de tanta inovação, o humano continua reduzido a uma peça — agora digital — dentro de uma engrenagem sem rosto. O sentimento de insignificância, de impotência diante de regras incompreensíveis, permanece atual.


A esperança em meio ao absurdo

Mas Kafka não era apenas um profeta do desespero. Apesar do tom sombrio de suas obras, há nelas um impulso humano persistente: seus personagens continuam tentando, buscando respostas, querendo compreender. Mesmo quando tudo parece perdido, eles não deixam de agir.

Talvez essa seja a lição final que Kafka nos deixaria diante da burocracia do século XXI. Ele reconheceria o absurdo, desmascararia a falsa modernidade dos sistemas e alertaria para os riscos da desumanização. Mas, ao mesmo tempo, veria na persistência humana — essa teimosia quase irracional de buscar justiça, clareza e dignidade — um tipo de resistência silenciosa.


Conclusão

Franz Kafka não viveu para ver os formulários digitais, as senhas de seis dígitos, os chats automatizados nem os fluxogramas corporativos. Mas, de alguma forma, ele os previu. A burocracia do século XXI, com toda a sua tecnologia e promessa de eficiência, ainda carrega a essência do pesadelo kafkiano: a lógica fria, a opacidade das decisões e a despersonalização do indivíduo.

Se Kafka estivesse entre nós, talvez não escrevesse sobre castelos ou tribunais invisíveis, mas sobre servidores fora do ar, respostas automáticas, links quebrados e atendimentos que nunca chegam. E, mesmo assim, continuaria nos mostrando — com sua pena afiada e sua sensibilidade única — que a maior prisão burocrática ainda é aquela que desumaniza. Porque, como ele mesmo disse, “as correntes da escravidão são feitas de papel de escritório”.

Kafka não desapareceu. Ele apenas mudou de endereço: agora habita nossos protocolos, nossos sistemas online e os infinitos termos de uso que ninguém lê. Seu grito silencioso ainda ecoa, e talvez, ao reconhecê-lo, estejamos um pouco mais livres.


A burocracia moderna pode ter mudado de forma, mas não de essência. E talvez o mais kafkiano de tudo seja perceber que, mesmo em meio a tanta “eficiência”, ainda nos sentimos — como Josef K. — culpados por algo que não compreendemos, lutando contra sistemas que não podemos ver, e buscando justiça onde só há silêncio.

Kafka, hoje, não escreveria ficção. Apenas descreveria a realidade.


Até mais!

Tête-à-Tête