Um romance fora de molde
Publicada em 1928, Macunaíma é uma das obras mais originais e complexas da literatura brasileira. Escrita por Mário de Andrade, um dos líderes do movimento modernista, a obra rompe radicalmente com os modelos tradicionais de narrativa e linguagem.
Descrito no subtítulo como um “herói sem nenhum caráter”, Macunaíma é uma figura contraditória: preguiçoso e astuto, mítico e mundano, selvagem e urbano. Ele é o retrato simbólico de um Brasil múltiplo, contraditório e em formação. Por isso, este romance é mais do que uma sátira ou uma fábula folclórica — é uma tentativa ousada de definir a alma brasileira, através da fusão entre mito indígena, cultura popular, crítica social e experimentação estética.
Contexto histórico e literário
Macunaíma surge no contexto da 1ª fase do Modernismo brasileiro, marcada pela Semana de Arte Moderna de 1922. Esse período foi caracterizado por:
- Ruptura com o academicismo e o formalismo da arte;
- Busca por uma identidade nacional autêntica;
- Mistura entre erudito e popular, nacional e estrangeiro;
- Linguagem oral e coloquial;
- Inovações formais e temáticas.
Mário de Andrade, junto a Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e outros, buscava criar uma literatura genuinamente brasileira, livre das amarras europeias e comprometida com a diversidade cultural do país.
Enredo: o mito tropical do anti-herói
A história começa com a frase famosa:
“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente.”
Macunaíma nasce em uma tribo indígena amazônica, mas desde cedo revela seu “nenhum caráter”: é preguiçoso, mentiroso, irreverente e cheio de malícia. Apesar disso, ele é dotado de poderes mágicos, mudando de forma e realizando feitos extraordinários.
Ao longo da narrativa, Macunaíma deixa sua terra natal e parte com os irmãos Jiguê e Maanape rumo à cidade de São Paulo, para recuperar um amuletos encantado (o muiraquitã) que simboliza seu amor perdido por Ci, uma deusa da floresta.
Essa jornada funciona como uma paródia dos épicos tradicionais: em vez de um herói virtuoso que luta por um ideal, temos um anti-herói oportunista, que vagueia entre desejos, desventuras, encontros com seres mitológicos, figuras populares e personagens urbanos.
No fim, decepcionado com o mundo dos homens, Macunaíma volta para o céu, transformando-se em estrela — como em muitos mitos indígenas.
Temas centrais
Identidade brasileira
O eixo central do romance é a construção da identidade nacional. Mário de Andrade cria uma figura que sintetiza as contradições do Brasil:
- Macunaíma é indígena, mas fala português cheio de regionalismos;
- É mágico e mitológico, mas vive em cidades modernas;
- É preguiçoso e esperto, cínico e infantil;
- É mestiço, antropofágico, múltiplo.
Ele incorpora as várias “Brasilidades” — indígena, africana, europeia — e mostra que o Brasil não tem um caráter único, mas sim uma pluralidade cultural que desafia a lógica tradicional do herói clássico.
Crítica social e política
Embora seja um livro fantasioso, Macunaíma faz duras críticas à sociedade brasileira:
- Ridiculariza a elite urbana e a burocracia;
- Mostra o contraste entre o Brasil rural e o urbano;
- Expõe o racismo, o colonialismo e a desigualdade;
- Questiona a moral, a religiosidade e o poder político.
Macunaíma atravessa o Brasil como um observador e vítima das contradições nacionais, e a cidade de São Paulo surge como símbolo do progresso artificial, onde a cultura popular é marginalizada.
Sincretismo cultural
A obra é um verdadeiro caldeirão de culturas: reúne mitologia indígena, lendas africanas, elementos da cultura sertaneja, nordestina e urbana. É uma celebração da miscigenação e da diversidade, um reflexo da “colcha de retalhos” que é o Brasil.
Linguagem e estilo
Um dos aspectos mais revolucionários de Macunaíma é a linguagem. Mário de Andrade abandona o português formal e adota uma língua mestiça, oralizada e rica em neologismos, influenciada por falares regionais, expressões populares e línguas indígenas.
Esse estilo causa estranhamento, mas também encanta pela criatividade. O autor mistura registros populares com termos cultos, num verdadeiro exercício de liberdade literária.
O romance também não segue a estrutura linear tradicional. É fragmentado, cíclico, repleto de episódios que se sucedem quase como contos, lendas ou sonhos. Há momentos líricos, cômicos, grotescos e simbólicos.
A função do mito
Embora Macunaíma pareça uma figura cômica e incoerente, ele é, na verdade, uma construção mitológica complexa. Mário de Andrade estudou etnografia e folclore brasileiro, e se inspirou em lendas amazônicas, como as recolhidas por Koch-Grünberg, para compor seu personagem.
O mito, aqui, é usado não para idealizar o herói, mas para questionar o heroísmo tradicional. Ao subverter o modelo épico europeu, Mário cria um mito brasileiro, adaptado à realidade tropical, mestiça e ambígua do país.
Modernismo em sua essência
Macunaíma é considerado por muitos críticos como a obra-prima do Modernismo da 1ª fase. Ele realiza tudo aquilo que o movimento pregava:
- Ruptura com a tradição: nega o realismo e a estética acadêmica;
- Experimentação linguística: recria a língua brasileira, como Oswald de Andrade propôs no Manifesto Antropofágico;
- Busca da identidade nacional: mostra o Brasil não como cópia da Europa, mas como um país singular, contraditório e original.
Mário de Andrade faz do romance um laboratório de Brasil, fundindo forma e conteúdo numa proposta inteiramente nova.
Interpretação do subtítulo: “herói sem nenhum caráter”
O subtítulo de Macunaíma — “herói sem nenhum caráter” — é irônico, ambíguo e cheio de significado. Pode ser lido de diversas formas:
- Crítica moral: Macunaíma é sem caráter ético, oportunista e preguiçoso;
- Caracterização do Brasil: o país é múltiplo, indefinido, sem uma identidade fixa — “sem um só caráter”;
- Desconstrução do herói: ele não é um herói no sentido clássico, mas um anti-herói que reflete a realidade brasileira.
Essa frase resume a essência do romance: um personagem contraditório, mas profundamente representativo.
Atualidade da obra
Mesmo quase um século depois, Macunaíma permanece atual e relevante. Suas críticas à desigualdade, à elite urbana, ao apagamento cultural e à crise de identidade nacional ainda ressoam no Brasil contemporâneo.
Além disso, a obra continua sendo um desafio instigante aos leitores, um convite a refletir sobre quem somos como povo e como nossa literatura pode expressar essa complexidade.
Considerações finais
Macunaíma é uma obra essencial para quem quer compreender o Modernismo brasileiro, mas também o Brasil em sua profundidade cultural, histórica e social. Mais do que um livro, é uma experiência literária: estranha, poética, cômica, simbólica e provocadora.
Ao criar um herói tão cheio de contradições, Mário de Andrade não oferece respostas — oferece um espelho. E esse espelho, como todo bom clássico, continua nos provocando a cada leitura.
Até mais!
Tête-à-Tête

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