A depressão é um dos grandes males do século XXI. Segundo a Organização Mundial da Saúde, afeta centenas de milhões de pessoas em todo o mundo. Embora seja amplamente estudada pela psiquiatria, psicologia e neurociência, a filosofia também pode oferecer contribuições valiosas para compreendê-la — sobretudo quando nos convida a pensar sobre o sentido da vida, os valores sociais e o sofrimento humano.

Um dos pensadores mais provocadores nesse campo é Friedrich Nietzsche (1844–1900). Filósofo alemão do século XIX, Nietzsche escreveu sobre dor, angústia, niilismo, superação e criação de sentido — temas que dialogam diretamente com o que chamamos hoje de experiência depressiva. Embora Nietzsche não tenha tratado da depressão em termos clínicos, suas ideias podem ser interpretadas como um convite a enxergar essa condição sob outra luz: menos como doença e mais como crise existencial e oportunidade de transformação.

Neste artigo, vamos explorar como Nietzsche poderia nos ajudar a compreender a depressão moderna, criticando os valores sociais que a agravam, e oferecendo um caminho de reconstrução da vida a partir da dor.


O sofrimento como parte da vida — e da criação

Para Nietzsche, o sofrimento é inerente à existência e, muitas vezes, necessário ao crescimento humano. Em vez de evitá-lo a qualquer custo, como tende a fazer a sociedade contemporânea, ele acreditava que a dor poderia ser transformadora.

No livro O Nascimento da Tragédia, Nietzsche examina a cultura grega antiga e identifica duas forças fundamentais: o apolíneo (ordem, razão, harmonia) e o dionisíaco (caos, embriaguez, dor, instinto). A tragédia grega surge da tensão entre essas duas forças — e ensina que a vida é, em si, contraditória e dolorosa, mas também bela.

A partir dessa visão, podemos pensar a depressão como uma experiência dionisíaca radical: um mergulho no caos, na dor e na desilusão. Para Nietzsche, não se trata de suprimir isso, mas de aceitar o sofrimento como parte da condição humana e até transformá-lo em força criadora.

“É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela dançante.” — Assim Falou Zaratustra


A crítica à moral do rebanho e à sociedade conformista

Nietzsche foi um crítico feroz da moral judaico-cristã e da sociedade burguesa de sua época, que ele via como promotora de valores de submissão, medo, ressentimento e conformismo. Essa “moral de rebanho”, segundo ele, condiciona o indivíduo a reprimir seus instintos vitais e a viver em função de padrões impostos — o que, para muitos, leva à frustração, vazio e adoecimento interior.

Transpondo isso para os dias atuais, podemos pensar: quantas pessoas adoecem emocionalmente por tentar se adequar a expectativas sociais que não correspondem ao seu desejo autêntico? Pressão por sucesso, culto à produtividade, comparações nas redes sociais, idealizações inatingíveis… Tudo isso pode levar à sensação de fracasso e impotência que compõe o estado depressivo.

Nietzsche enxergaria nisso uma forma moderna de niilismo passivo: quando o sujeito não acredita mais em nada e não encontra forças para criar seus próprios valores.


O niilismo como diagnóstico da modernidade

Nietzsche foi, antes de tudo, um diagnosticador da crise de sentido do Ocidente. Em A Gaia Ciência, ele anuncia a famosa frase: “Deus está morto.” Isso significa que os valores tradicionais — religiosos, morais, metafísicos — haviam perdido sua força na cultura moderna. E sem esses pilares, o homem moderno se vê diante de um vazio de sentido, um niilismo.

Essa experiência niilista está no cerne da depressão moderna: a perda de significado, a desconexão com o mundo, a ausência de propósito. Nietzsche percebeu que, sem crenças fortes, o sujeito moderno pode cair em um estado de apatia existencial. Mas ele não para aí: ele propõe que o niilismo é uma etapa necessária para que o ser humano destrua valores decadentes e crie novos modos de viver.

“O homem é uma corda estendida entre o animal e o além-do-homem — uma corda sobre o abismo.” — Assim Falou Zaratustra


A vontade de potência como saída

O conceito de vontade de potência é central na filosofia de Nietzsche. Mais do que instinto de sobrevivência, trata-se de uma força vital que impulsiona o ser a crescer, a criar, a superar a si mesmo. Em oposição à resignação e ao niilismo passivo, a vontade de potência é a expressão da vida em sua intensidade.

Para alguém em depressão, esse conceito pode parecer distante ou até cruel. Mas Nietzsche diria que a superação não vem da negação da dor, e sim da transvaloração: dar um novo valor ao que se vive, mesmo no sofrimento. É olhar a dor de frente e perguntar: “O que posso fazer com isso?”

Nietzsche não propõe um otimismo ingênuo, mas uma afirmação trágica da vida, com todas as suas imperfeições. O “além-do-homem” (Übermensch) não é um super-herói, mas um indivíduo que cria seus próprios valores e aceita a existência como ela é — inclusive a dor.


O eterno retorno e a aceitação radical da vida

Em uma de suas ideias mais instigantes, Nietzsche propõe o eterno retorno: a hipótese de que tudo o que vivemos irá se repetir infinitamente, exatamente da mesma forma. Esse pensamento serve como teste ético: se você soubesse que viveria sua vida, com todos os seus momentos — bons e ruins — eternamente, diria “sim” a ela mesmo assim?

Para o filósofo, o ideal é viver de modo a afirmar a existência por completo, sem arrependimentos. Aplicado à depressão, isso nos convida a uma reflexão poderosa: é possível aceitar até mesmo os momentos sombrios como parte da nossa jornada?

A aceitação nietzschiana não é passiva, mas ativa: é escolher dizer “sim” à vida, apesar de tudo. É reconhecer que até a dor tem um papel formador — e que podemos renascer dela, mais fortes e mais autênticos.


Nietzsche e a psicologia moderna

Curiosamente, muitos psicólogos, psicanalistas e psiquiatras usam conceitos nietzschianos em suas abordagens. Carl Gustav Jung, por exemplo, via em Nietzsche um precursor das ideias sobre o inconsciente e o processo de individuação. Viktor Frankl, criador da logoterapia, também se inspirou na ideia de criação de sentido diante do sofrimento.

Hoje, filósofos como Byung-Chul Han retomam Nietzsche para pensar o excesso de positividade e a depressão como efeito colateral de uma sociedade do desempenho.

Nesse contexto, Nietzsche pode ser lido como um pensador da reconstrução do sujeito: aquele que mergulha na dor, confronta o vazio e emerge com novos valores. Ele não oferece uma cura médica, mas um chamado à transformação existencial.


Conclusão: Nietzsche e a depressão como crise de sentido

Nietzsche não tratou da depressão como doença psíquica, mas como expressão de uma crise profunda de valores e identidade. Para ele, a dor não é um obstáculo à vida — é parte dela. O problema está na maneira como lidamos com ela: se a negamos ou se a usamos para crescer.

Seu pensamento pode ser desconfortável, mas também libertador: ele nos convida a parar de esperar soluções externas e começar a criar sentido a partir de dentro, mesmo em meio ao caos. É uma filosofia exigente, mas também profundamente humana.

Em tempos em que tantos se sentem perdidos, vazios ou fracassados, talvez devêssemos perguntar — como Nietzsche —: E se, em vez de escapar da dor, aprendêssemos a dançar com ela?


Até mais!

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