A obra Física de Aristóteles é uma das primeiras tentativas sistemáticas de compreender a natureza por meio da razão filosófica. Longe do que hoje entendemos por “física” no sentido moderno (como ciência experimental), o termo grego physis refere-se à natureza como princípio de movimento e mudança. Nos livros I e II, Aristóteles lança os fundamentos de sua filosofia natural, propondo categorias centrais como substância, causa, mudança e finalidade — conceitos que moldaram séculos de pensamento científico e filosófico.
Este texto é parte de um conjunto maior, composto por oito livros. A presente resenha foca nos Livros I e II, que tratam dos princípios da natureza e das causas do movimento, temas fundamentais que sustentam o restante da obra.
Contexto e objetivo da obra
No século IV a.C., a investigação sobre a natureza (ou physis) era o campo central da filosofia pré-socrática. Aristóteles, embora influenciado por esses pensadores, sobretudo Parmênides, Heráclito e Empédocles, procura superar suas limitações ao oferecer uma explicação mais sistemática e abrangente da realidade natural.
Seu objetivo com a Física é identificar os princípios (ou arquês) que explicam a mudança e o movimento no mundo. Para ele, a natureza não é um caos ou um acaso, mas uma ordem inteligível, que pode ser compreendida por meio de causas e formas.
Livro I – A busca pelos princípios da natureza
No primeiro livro, Aristóteles parte da constatação de que tudo que está na natureza está sujeito à mudança — seja nascer, crescer, se mover, ou perecer. O ponto central da investigação é: o que é necessário para que a mudança ocorra?
Ele propõe que todo processo de mudança envolve três elementos:
- O substrato (ou sujeito) — aquilo que permanece durante a mudança.
- A forma — o que o ente se torna.
- A privação — o que o ente deixa de ser.
Um exemplo clássico é o bronze (substrato), que pode se tornar uma estátua (forma), deixando de ser apenas um metal informe (privação).
Aristóteles então discute e critica as doutrinas de filósofos anteriores:
- Parmênides, que negava a possibilidade de mudança, é considerado incorreto por desconsiderar o papel do substrato.
- Os pluralistas (como Empédocles e Anaxágoras) são vistos como parcialmente corretos, mas Aristóteles discorda de suas noções de mistura e separação dos elementos.
Ao final do Livro I, Aristóteles apresenta os conceitos fundamentais de matéria e forma (hylê e eidos), que formarão a base de sua teoria da realidade composta, ou hilemorfismo: tudo o que existe na natureza é uma combinação de matéria e forma.
Livro II – A natureza e as quatro causas
No segundo livro, Aristóteles aprofunda sua análise da natureza ao investigar não apenas o que é, mas por que é. É aqui que ele introduz de forma clara sua famosa teoria das quatro causas — uma tentativa de responder, de modo completo, à pergunta sobre a razão de ser das coisas naturais.
As quatro causas são:
- Causa material – Do que algo é feito (ex.: mármore de uma estátua).
- Causa formal – A forma ou estrutura que define a coisa (ex.: a figura da estátua).
- Causa eficiente – O agente ou processo que produz algo (ex.: o escultor).
- Causa final – O propósito ou fim para o qual algo existe (ex.: embelezar um templo).
A introdução da causa final é uma das marcas da filosofia aristotélica. Para Aristóteles, a natureza age com um fim — a teleologia. As plantas crescem para frutificar; os animais buscam a sobrevivência e a reprodução; os corpos naturais se movem para realizar sua finalidade.
Essa concepção é radicalmente distinta da visão mecanicista da natureza proposta mais tarde pelos filósofos modernos, como Descartes e Newton. Para Aristóteles, o mundo natural é inteligivelmente ordenado e dotado de sentido interno.
Natureza como princípio intrínseco de movimento
Outro ponto central do Livro II é a definição de natureza como um princípio interno de movimento. Ou seja, um ser natural tem em si mesmo a capacidade de se transformar, crescer, mudar. Isso distingue os seres naturais dos objetos artificiais.
Por exemplo:
- Uma semente contém em si o princípio de seu crescimento em uma planta.
- Uma cama, por outro lado, feita de madeira, não tem em si mesma o princípio de se transformar em algo novo; sua “forma” foi imposta de fora, por um artífice.
Essa distinção entre o natural e o artificial tem implicações profundas, inclusive éticas e epistemológicas: conhecer a natureza exige entender os processos internos que levam os seres ao seu desenvolvimento pleno.
Acaso e necessidade
No final do Livro II, Aristóteles discute o papel do acaso e da necessidade na explicação natural. Embora reconheça que certos eventos parecem ocorrer ao acaso (por exemplo, encontrar uma moeda no chão ao caminhar), ele argumenta que o acaso não pode ser a causa primária de nada. O acaso ocorre quando várias causalidades se cruzam de forma não intencional.
Aristóteles também distingue o acaso (tyché) da espontaneidade (automaton). Ambos são eventos imprevistos, mas o acaso só pode ocorrer quando há ações deliberadas envolvidas.
Por fim, o filósofo defende que a explicação dos fenômenos naturais deve priorizar o que ocorre por natureza, e não por acidente. A regularidade observável na natureza é sinal de ordem e finalidade — não de aleatoriedade.
Importância filosófica
Os Livros I e II da Física são fundamentais para se compreender toda a metafísica, ética, biologia e lógica aristotélicas. A noção de que a natureza possui uma ordem inteligível e uma finalidade interna influenciou profundamente o pensamento medieval, especialmente os filósofos cristãos como Tomás de Aquino.
A teoria das quatro causas, por exemplo, tornou-se a estrutura básica de explicação de praticamente todo o pensamento científico até o surgimento da ciência moderna, quando a causa final foi progressivamente abandonada em favor de explicações mecânicas.
Além disso, a distinção entre natureza e artefato, e a concepção de que o conhecimento exige compreender as causas, continuam sendo temas centrais na filosofia da ciência contemporânea.
Dificuldades e estilo
Assim como outras obras de Aristóteles, a Física apresenta um estilo denso, técnico e por vezes fragmentado. Acredita-se que o texto corresponde a anotações de aulas ministradas no Liceu, o que explica seu tom menos literário que os diálogos de Platão, por exemplo.
Os conceitos são muitas vezes explicados por meio de exemplos concretos, mas a linguagem exige familiaridade com o vocabulário filosófico grego. Leituras comentadas e o acompanhamento por intérpretes especializados são fortemente recomendados.
Conclusão
Os livros I e II da Física de Aristóteles lançam as bases da filosofia da natureza como um campo racional de investigação. Com sua teoria das quatro causas, a distinção entre forma e matéria, e a afirmação de que a natureza age por um fim, Aristóteles oferece uma visão unificada e finalística da realidade natural.
Mais do que uma simples análise do movimento ou da mudança, a obra propõe uma compreensão do mundo como uma totalidade ordenada, inteligível e dotada de sentido. Essa abordagem não só influenciou a ciência e a filosofia por mais de mil anos, como também continua a oferecer modelos profundos de reflexão sobre o que significa compreender a realidade.
Embora não seja uma leitura fácil, Física I–II é um texto essencial para quem deseja entender as origens do pensamento científico e filosófico ocidental. Ler Aristóteles é mergulhar em uma tradição de pensamento que continua viva — e desafiadora — até hoje.
Até mais!
Tête-à-Tête

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