Muito antes de ser conhecido como o “pai da economia moderna” e autor de A Riqueza das Nações (1776), Adam Smith publicou, em 1759, Teoria dos Sentimentos Morais, um tratado de filosofia moral que permanece como uma de suas obras mais importantes e profundas.

Nessa obra, Smith investiga os fundamentos do juízo moral, buscando entender o que motiva os seres humanos a agir de forma ética ou não, e como a sociedade regula essas ações através de normas não necessariamente legais, mas morais. O livro foi bem recebido em sua época e passou por várias revisões feitas pelo próprio autor, sinal de sua importância constante no pensamento de Smith.

A Teoria dos Sentimentos Morais antecipa e fundamenta muitas das ideias de sua obra posterior. Ao contrário do que o senso comum propaga — a imagem de um Smith puramente defensor do egoísmo racional — este livro mostra um pensador atento à complexidade das emoções humanas, às virtudes cívicas e à empatia como alicerce das relações sociais.


Sobre o autor:

Adam Smith (1723–1790) foi um filósofo moral escocês, figura central do Iluminismo escocês. Estudou na Universidade de Glasgow e na Universidade de Oxford. Foi professor de lógica e de filosofia moral em Glasgow, tendo se dedicado intensamente ao estudo de ética, jurisprudência, economia e filosofia política.

Além da Teoria dos Sentimentos Morais, sua obra mais conhecida é A Riqueza das Nações, marco inaugural da economia clássica. No entanto, Smith sempre se considerou, antes de tudo, um filósofo moral, e sua preocupação com a virtude e o convívio social nunca foi abandonada.


Estrutura da obra

A obra é dividida em sete partes, cada uma tratando de aspectos distintos da moralidade:

  1. Do juízo que fazemos sobre a conduta dos outros
  2. Do juízo que fazemos sobre a nossa própria conduta
  3. Do fundamento do juízo moral
  4. Do mérito e do demérito: ou da objeção e da recompensa
  5. Do caráter das virtudes
  6. Da influência da fortuna sobre os sentimentos morais
  7. Da influência dos sistemas filosóficos sobre o senso moral

Essa estrutura reflete a complexidade do tema abordado, mas Smith utiliza uma linguagem clara (para sua época), com muitos exemplos do cotidiano e analogias que facilitam a compreensão, mesmo tratando de temas abstratos.


Ideias centrais

Simpatia como base do juízo moral

O conceito-chave da obra é a simpatia, termo que hoje se aproximaria da ideia de empatia. Para Smith, os seres humanos não julgam as ações como boas ou más de maneira isolada, mas sim pela capacidade de se colocar no lugar do outro, imaginar o que ele sente e avaliar se sua própria reação seria semelhante.

A simpatia, portanto, é o fundamento da moralidade: quando vemos alguém sofrer ou se alegrar, sentimos algo correspondente — ainda que de forma atenuada — e isso nos guia em nossos julgamentos sobre o que é justo ou injusto.

O espectador imparcial

Outra noção central é a do “espectador imparcial”, uma espécie de instância interior que usamos para julgar nossas próprias ações como se fôssemos terceiros. Trata-se de um modelo de consciência moral: perguntamo-nos o que alguém racional, informado e sem envolvimento direto pensaria de nossa atitude.

Esse espectador não é necessariamente real, mas um ideal regulador. Ele permite que ajustemos nossos comportamentos para viver em sociedade de maneira harmônica, pois buscamos a aprovação moral tanto dos outros quanto de nós mesmos, por meio dessa projeção.

Moralidade além do interesse próprio

Um dos grandes méritos da obra é desmontar a ideia de que todas as ações humanas são motivadas exclusivamente pelo interesse próprio — uma visão que Smith combate. Ele reconhece que o interesse próprio é uma força relevante, mas argumenta que as emoções morais, como compaixão, senso de justiça e desejo de aprovação, também desempenham papel fundamental no comportamento humano.

Desse modo, Smith oferece um contraponto à visão hobbesiana do homem como essencialmente egoísta e violento, e também antecipa a crítica à frieza do utilitarismo clássico, que reduz a ética ao cálculo de prazer e dor.

Virtudes morais

Smith distingue três virtudes principais:

  • Prudência, associada à sabedoria prática e ao cuidado consigo mesmo;
  • Justiça, como o respeito às regras de convivência e aos direitos alheios;
  • Benignidade ou beneficência, que vai além do dever e se refere a atos de bondade e generosidade voluntária.

A justiça é vista como um mínimo moral obrigatório, sem o qual a sociedade não pode funcionar. Já a beneficência é uma virtude superior, mas que não pode ser exigida coercitivamente. Essa distinção entre dever e virtude é uma das marcas do pensamento moral de Smith.


Relevância e influência

Uma base para A Riqueza das Nações

Muitos leitores que conhecem apenas A Riqueza das Nações tendem a ver Adam Smith como um defensor do laissez-faire e da racionalidade econômica pura. No entanto, é impossível compreender integralmente o pensamento de Smith sem considerar Teoria dos Sentimentos Morais.

Ao unir economia e ética, Smith delineia um modelo de sociedade em que os mercados operam com liberdade, mas dentro de um contexto de normas morais, virtudes cívicas e instituições justas. Ele nunca defendeu um “egoísmo sem freios”, como muitas caricaturas sugerem.

Impacto filosófico

A obra teve grande influência na tradição da ética sentimental, ao lado de autores como David Hume. Smith foi pioneiro ao estudar os sentimentos morais como fenômenos sociais e psicológicos, antecipando muitos temas hoje explorados por áreas como a psicologia moral, as ciências cognitivas e a sociologia.

Suas ideias também dialogam com pensadores posteriores como Kant (que ofereceria uma visão mais racionalista da moral), Nietzsche (crítico das virtudes tradicionais) e mesmo com autores contemporâneos como Martha Nussbaum e Amartya Sen.


Críticas e limitações

Apesar de sua importância, Teoria dos Sentimentos Morais também recebeu críticas. Uma delas é que o conceito de simpatia pode ser insuficiente como critério moral, pois dependeria muito de sentimentos subjetivos e poderia variar conforme o contexto ou o grau de empatia do observador.

Além disso, a noção de espectador imparcial, embora poderosa, pode ser difícil de aplicar em situações onde há profundo conflito de interesses ou visões de mundo. Também há críticas quanto à ausência de uma abordagem mais sistemática sobre os direitos individuais, que seriam posteriormente mais bem desenvolvidos por Kant e os liberais do século XIX.

Ainda assim, essas limitações não diminuem o valor da obra. Ao contrário, elas indicam sua riqueza como ponto de partida para reflexões posteriores.


Estilo e leitura

A linguagem da obra é erudita, mas não inacessível. Smith escreve com clareza e usa exemplos cotidianos e históricos para ilustrar suas teses. O ritmo é cadenciado, típico da filosofia do século XVIII, mas a profundidade das ideias recompensa a leitura atenta.

A obra também pode ser lida seletivamente: partes específicas, como os capítulos sobre simpatia, virtude ou justiça, podem ser estudadas isoladamente sem comprometer a compreensão geral.


Teoria dos Sentimentos Morais é uma obra-prima da filosofia moral e uma chave de leitura essencial para se compreender o verdadeiro pensamento de Adam Smith. Mais do que um precursor da economia liberal, Smith foi um pensador profundo e sutil, que buscou compreender como os seres humanos, apesar de sua limitação e interesse próprio, são capazes de construir uma vida moral e uma sociedade justa.

Ao colocar a simpatia e o espectador imparcial no centro da vida ética, Smith antecipa questões ainda debatidas na filosofia, na psicologia e na política. Em tempos de individualismo exacerbado e desconfiança social, seu convite a pensar a ética como algo enraizado na experiência comum do outro soa mais atual do que nunca.

Ler Teoria dos Sentimentos Morais é mergulhar em uma meditação profunda sobre o que significa ser humano em sociedade — e descobrir que a economia, a moral e a política estão, no fundo, entrelaçadas por aquilo que sentimos uns pelos outros.


Até mais!

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