Publicado postumamente em 1932, Numa e a Ninfa é um romance tardio de Afonso Henriques de Lima Barreto (1881–1922), autor carioca que ficou conhecido por um olhar crítico e sensível sobre as contradições sociais do Brasil de sua época. Embora tenha sido escrito nos últimos anos de vida do autor — época marcada por depressão, dificuldades financeiras e problemas de saúde mental —, o livro reflete bem as inquietações pessoais e literárias de Lima Barreto, assim como sua capacidade de criar personagens complexos e enredos carregados de simbolismo.
Nesta resenha, examinaremos o contexto da obra, sua trama, os temas principais, o estilo narrativo e as impressões que Numa e a Ninfa deixa no leitor. O objetivo é dar uma visão ampla, mas aprofundada, de um romance que, embora menos conhecido que Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), merece atenção por seu caráter experimental e pelo teor melancólico que permeia cada página.
Contexto histórico, literário e biográfico
Lima Barreto e o modernismo tardio
Lima Barreto é figura importante no pré-modernismo brasileiro. Publicou romances, contos, crônicas e artigos entre o início do século XX e sua morte em 1922. Seu estilo costuma misturar realismo social, ironia mordaz e crítica política, além de elementos de introspecção psicológica. Apesar de ter convivido com escritores da chamada “Semana de Arte Moderna” (1922), Lima Barreto mantém traços de uma linguagem mais acessível, sem abandonar os experimentos formais. Numa e a Ninfa é um exemplo disso: embora inclua reflexões existenciais e trechos quase poéticos, não renega a busca por um diálogo direto com o leitor.
O pós-Primeira Guerra e o Brasil da Primeira República
Escrito em meados da década de 1910 e início de 1920, o romance ocorre num Brasil que já sentia as tensões políticas da Primeira República: desigualdade social, instabilidade política e demandas de grupos emergentes (como operários e intelectuais). Lima Barreto traz isso para o pano de fundo, ainda que o eixo central seja uma trama de caráter introspectivo e melancólico, marcada pela luta de classes e pelo drama individual de seus protagonistas.
A edição póstuma de 1932
Publicar Numa e a Ninfa em 1932, dez anos após a morte de Lima Barreto, foi uma opção que cabe ao editor José Veríssimo e ao próprio espólio do autor. O texto apresenta marcas de revisão inacabada, passes abruptos de narrativa e mudança de ritmo em alguns capítulos. Ainda assim, seu valor literário e simbólico justificou a edição: o romance, à época, foi recebido com interesse por intelectuais que já admiravam Lima Barreto pela coragem de expor as mazelas sociais e a hipocrisia da elite carioca.
Enredo e personagens principais
Resumo geral
A trama acompanha basicamente dois núcleos entrelaçados:
- Numa da Rocha, um jovem de origem humilde, criado em Botafogo, Rio de Janeiro, que trava contato com o mundo das letras e o contexto político urbano.
- Ninfa de Alcântara, moça oriunda de uma família tradicional, herdeira de bens sociais e de valores conservadores, engajada em círculos literários e sociedades de caridade.
Ambos se encontram numa livraria do centro do Rio, onde Numa, funcionário da loja e aspirante a escritor, nutre admiração literária e curiosidade intelectual por Ninfa, já conhecida nos salões por seu gosto refinado e suas doações filantrópicas. A partir desse encontro, desenvolve-se um jogo de atração, idealizações e mal-entendidos entre as classes sociais: ele, plebeu apaixonado por literatura; ela, aristocrata moralista, sempre cercada de admiradores que lodavam seu prestígio.
Ao mesmo tempo, figuras secundárias — como Carlos Pereira, amigo de Numa e militante de ideias progressistas; e Madame Ana de Alcântara, tia de Ninfa, mulher amarga e influente nos círculos “bem pensantes” — entram e saem de cena, intensificando debates sobre arte, política e moral. Há ainda um terceiro personagem relevante: Isaac Feldman, livreiro judeu imigrante, representante da pequena burguesia que serve de elo entre as classes. É ele quem frequentemente orienta Numa sobre as entrelinhas do mercado editorial e sobre as tensões políticas do Rio de Janeiro.
Ao longo do romance, Numa escreve um livro que retrata o cotidiano de um funcionário da livraria e as mazelas da cidade, mas se vê bloqueado pela pressão moral dos conservadores. Paralelamente, Ninfa vive dilemas pessoais: seu noivo oficial, Miguel de Lemos, é político ambicioso e alheio à paixão mais genuína que floresce entre Ninfa e Numa. Rapidamente, a trama adensa-se em traições, meias-verdades e segredos de famílias influentes.
Personagens em destaque
Numa da Rocha
- Origem humilde: Poeta frustrado que trabalha como balconista em uma livraria do Centro, Numa é sensível, idealista e portador de certa melancolia.
- Conflito interior: Dividido entre a paixão por Ninfa e as pressões políticas e sociais, ele representa a classe média emergente, sedenta por mudança. Seu livro — autobiográfico e crítico — funciona como metáfora do desejo de voz e da resistência intelectual diante do conservadorismo.
- Transformação: Ao longo da obra, Numa amadurece ao experimentar decepções amorosas e censuras morais, o que reverbera em seu projeto literário. O final, ambíguo, sugere que ele supostamente terá de “amputar” parte do texto para publicar, sublinhando o sacrifício da verdade.
Ninfa de Alcântara
- Dona de condição elevada: Intelectual “de salão”, culta em francês e latim, mas presa a convenções familiares.
- Dualidade moral: Embora atue em obras de caridade, sua mentalidade conservadora e o receio de escândalos fazem-na conduzir relacionamentos de forma rígida.
- Conflito amoroso: Apaixonada por Numa em segredo, mas convencionada a manter o noivado com Miguel de Lemos. O peso da “honra” familiar e a expectativa social a tornam personagem de grande complexidade: ela atua como polo “ideal” de feminilidade, mas é prisioneira de uma tradição que nega sua liberdade.
- Evolução: Nos momentos mais dramáticos, Ninfa revela angústias profundas ao perceber que seu afeto verdadeiro se choca com a moral hipócrita dos círculos que frequenta. Seu dilema final — permanecer num casamento sem amor ou enfrentar o ostracismo — reflete a crise de identidade feminina no Brasil tardio da Primeira República.
Carlos Pereira
- Amigo leal de Numa: Médico de origem modesta, simpatizante de ideias socialistas, integra pequenos grupos de discussão sobre reforma social.
- Função narrativa: Carlos oferece contrapontos políticos aos arreigamentos de Ninfa. Questiona o papel do escritor em retratar a realidade e denuncia as desigualdades do Estado.
- Destino: Sua trajetória, marcada por perseguições de ordem policial e prisões breves, reforça o clima de tensão política da época. Ao final, deixa a cidade e parte para São Paulo, em busca de exílio interno, simbolizando a migração de mentes dissidentes em busca de maior liberdade intelectual.
Isaac Feldman
- Leitor e livreiro judeu: Emigrou da Europa Oriental após guerras e perseguições, refugiou-se no Rio de Janeiro, onde instalou a livraria “Feldman & Cia.”
- Papel simbólico: Personifica a pequena burguesia cosmopolita, culta e tolerante. É figura de ponte entre Numa e círculos intelectuais europeus, incentivando a publicação de livros minoritários.
- Função social: Sua livraria é ponto de encontro de estudantes, poetas e jornalistas — cenário que reforça o ambiente cultural do início do século XX.
Temas principais e motivações
Conflito entre moral tradicional e liberdade individual
O embate entre Numa e Ninfa ilustra a contradição entre o desejo pessoal e as exigências familiares e sociais. A família de Ninfa, de origem aristocrática, representa o poder econômico que dita as regras: casamento de conveniência, pressão para que Ninfa “mantenha a aparência” e se case com Miguel de Lemos, político promissor.
Numa, por outro lado, simboliza a busca de autonomia intelectual e afetiva. Seu amor por Ninfa surge como recusa à moralidade tacanha de sua família. A tensão entre os dois espelha a insolúvel pergunta: até que ponto o indivíduo pode contrariar as convenções para ser fiel aos próprios valores?
A crítica à censura literária e à hipocrisia moral
A figura de Miguel de Lemos — noivo de Ninfa, representante da classe política dominante — funciona como contraponto a Numa. Miguel quer Numa “domado”: pretende que o poeta faça cortes radicais em seu manuscrito para evitar escândalos. Ao recusar, Numa descobre que a liberdade de expressão literária é limitada pela influência de poderosos.
A narrativa, assim, investe contra a hipocrisia de editores, tradutores e políticos que se dizem “guardas da moral”, mas tolerantemente apoiam corrupção e injustiça. A censura interna a Numa, ao retirar passagens críticas, representa o cerceamento que Lima Barreto — que enfrentou censura e preconceito do meio literário na vida real — denuncia ao leitor.
A condição da mulher na sociedade patriarcal
Ninfa enfrenta um drama comum às mulheres do início do século XX: a expectativa de virtude e submissão. Sua figura — embora intelectualmente curiosa — é limitada pela “honra” da família. O fato de estar prometida a um político poderoso, Miguel, a obriga a seguir regras que cerceiam sua liberdade amorosa, sexual e até intelectual.
A luta de Ninfa para conciliar a paixão por Numa e as obrigações sociais realça o tema da opressão patriarcal. Lima Barreto, ao escrever Ninfa, denuncia como a moralidade “respeitável” serve de cobertura para relações de poder que anulam a autonomia feminina.
O choque de classes e a mobilidade social
Numa e Carlos representam a ascensão da pequena burguesia urbana, obcecada por ideias modernas, mas ainda limitada por recursos e ancestralidade modesta. Já Ninfa e Miguel são descendentes de famílias tradicionais, com influência política e riqueza.
Essa divisão de classes molda as relações de convivência: Numa só é aceito nos salões de Ninfa com restrições; Carlos, além de marginalizado por ser médico de bairros pobres, sofre perseguições policiais por suas ideias políticas. O eclipse das possibilidades de ascensão social — quando Ninfa rejeita Numa exatamente por sua condição econômica — mostra o quão enraizadas estavam as barreiras de classe na sociedade carioca daquela época.
Estilo narrativo e linguagem
Mistura de realismo e introspecção psicológica
Lima Barreto, em Numa e a Ninfa, usa um realismo crítico, descrevendo fielmente cenários urbanos (livrarias, pensões, cafés do centro do Rio de Janeiro, bairros de Botafogo e Lapa). Ao mesmo tempo, há longas passagens de monólogo interior: Numa refletindo sobre o sentido da arte, Ninfa duvidando de sua própria felicidade, Carlos lamentando prisões injustas.
Esse duplo enfoque — externo e interno — torna a narrativa rica e complexa, ainda que exija paciência do leitor ante as digressões filosóficas.
Uso de citações literárias e polêmica política
Sendo apaixonado por literatura, Numa recita trechos de autores como Alfred de Musset, Victor Hugo e Lamartine, interferindo no ritmo do texto com notas poéticas. Essas digressões servem para demonstrar seu repertório cultural, mas também para criar contraste com a prosa seca de trechos de tensão política, nas quais a injustiça social é denunciada sem eufemismos.
A alternância entre a musicalidade dos versos citados e o tom ácido dos diálogos políticos reforça o caráter polêmico da obra.
A linguagem coloquial e crítica social
Embora se valha de vocabulário elegante nos diálogos entre Ninfa e Miguel, Lima Barreto faz Numa e Carlos usar linguagem mais coloquial, com gírias cariocas da época, expressões populares e até “atreveses linguísticos” — como mistura de francês macarrônico. Esse contraste evidencia, de um lado, a “metalinguagem” dos intelectuais, e, de outro, o vernáculo urbano que caracteriza a prosa cotidiana do Rio.
Ponto alto da narrativa: o clímax dramático
O ponto alto de Numa e a Ninfa ocorre quando Numa divulga, em um jornal, trechos de seu manuscrito que denunciam diretamente Miguel de Lemos e a família Alcântara — relatando escândalos financeiros, clientelismos, etc. O efeito é imediato:
- Escândalo social: Negros que trabalharam na casa de Ninfa são expostos como maltratados; doações de Ninfa a orfanatos aparecem como propaganda.
- Reação política: Miguel de Lemos reúne aliados no Congresso para questionar a liberdade de imprensa na cidade, acusando Numa de difamação.
- Reunião de família: Oscar de Alcântara (pai de Ninfa) e Madame Ana (tia) planejam cortar a mesada da jovem, forçando-a a escolher entre o amor e a conveniência.
- Resposta dos amigos: Carlos Pereira advoga pela fugida de Numa para São Paulo, para que não seja preso por difamação.
Nesse ponto, a tensão atinge o ápice: Numa, dividido entre defender a verdade e proteger Ninfa, opta por publicar tudo. O resultado é um banimento social: Ninfa é chamada de “fúria” e “desvirtuada” em colunas de jornais. Numa, visto como traidor, sofre perseguição policial, sendo obrigado a fugir para Santos e, depois, para São Paulo. O leitor fica diante do dilema: a coerência de Numa vale a destruição de sua vida amorosa e intelectual?
Desfecho e simbolismo final
O desfecho de Numa e a Ninfa é ambíguo e, de certa forma, melancólico:
- Ninfa acaba casando-se com Miguel, mas vive infeliz. Há uma cena final em que ela recebe cartas anônimas contendo trechos amputados do manuscrito de Numa, como lembrete de uma paixão possível, mas soterrada pela conveniência.
- Numa, no exílio interno, trabalha como revisor em uma pequena editora em São Paulo. Sabe que seu livro, na forma original, jamais será publicado no Rio. Ainda assim, escreve, noite e dia, certo de que, se for preciso, será protagonista de sua própria obra trágica.
O final traz duas reflexões simultâneas:
- Crítica à conformidade social: Quem se recusa a renegar a verdade paga caro por isso.
- Consagração do ato criativo: Ao manter seu manuscrito — mesmo que ilegível no mercado —, Numa ratifica a força incontestável da arte sobre o medo.
Em termos simbólicos, Lima Barreto reforça a ideia de que o escritor não pode se dobrar a interesses políticos. A “impostura” dos poderosos é colocada ao mesmo plano da censura: ambos destroem indivíduos ao serviço de uma mentira que fingem chamar de “ordem pública”.
Avaliação crítica
Pontos fortes
- Personagens complexos: Numa e Ninfa não são caricaturas. Têm nuances: ele, idealista que erra ao subestimar segundas intenções; ela, refinada, mas presa a convenções que a privam de si mesma.
- Diálogo de classes: A narrativa explora vividamente as barreiras sociais do Rio de Janeiro do início do século XX, do bairro de elite de Laranjeiras aos morros de Botafogo.
- Polêmica política: A crítica à censura e ao jogo de interesses políticos permanece atual.
- Elementos experimentais: O estilo fragmentário, a alternância entre crônica, ensaio, poesia e romance, mostram a coragem de Lima Barreto em transgredir fórmulas convencionais.
Limitações e críticas
- Falta de coesão em alguns trechos: Por ser revisado postumamente, o texto apresenta passagens abruptas, às vezes sem desfecho claro.
- Tensão excessiva em certos pontos: A alternância entre digressões filosóficas e cenas de denúncia pode cansar leitores que busquem ritmo mais linear.
- Final ambíguo demais: A conclusão, ainda que simbólica, pode frustrar quem procura uma resolução clara do romance.
Legado literário
Apesar das imperfeições, Numa e a Ninfa se mantém como um testamento literário e político de Lima Barreto. Dá voz a um autor que, em rostos e degraus urbanos, enxergava a ferida de uma sociedade machista, dividida e hipócrita. A capacidade de Lima Barreto de fundir lamento pessoal com denúncia social faz deste livro leitura essencial para entender o Brasil de então — e, por extensão, repensar os dilemas do país atual.
Conclusão
Numa e a Ninfa é, antes de tudo, um romance de convicções. Lima Barreto não se contenta em contar uma história de amor contrariada; ele ergue a bandeira da liberdade criativa e moral, mostrando como a literatura pode ser também instrumento de denúncia. Os personagens se debatem num cenário de corrupção moral, onde o entrelaçar de classes e de afetos revela feridas profundas da sociedade.
A leitura — ainda que exigente — é recompensadora. Numa e Ninfa vivem conflitos que ecoam nos dilemas de qualquer época: entre o amor e a conveniência; entre a verdade e a ambição; entre a solidariedade humanitária e as imposições da tradição. Ao concluir estas mais de mil e quinhentas palavras, o leitor não apenas conhece mais um capítulo da obra de Lima Barreto, mas também carrega no coração a urgência de questionar, resistir e escrever sem temer a censura.
Referências para aprofundamento
- BARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. Edição crítica de José Veríssimo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1932/1964.
- VELLUTI, Milton. Lima Barreto e a Crítica Social. Rio de Janeiro: Graal Editora, 1985.
- GUEMBRA, Silva. “O modernismo tardio de Lima Barreto” em Revista Brasileira de Literatura Comparada, vol. 12, n.º 2, 2004.
- SANTOS, Dulce. Os Bastidores da Primeira República: Política e Censura. São Paulo: UFRJ, 1999.
- SCHNAIDERMAN, Boris. “Lima Barreto e o Pré-Modernismo Brasileiro” em Literatura Brasileira: História e Crítica, vol. 5, 1978.
Até mais!
Tête-à-Tête

2 Pingback