Publicado em 1835 (primeira versão) e revisado em 1842, Tarass Bulba é, sem dúvida, uma das mais célebres e vigorosas narrativas de Nikolai Gógol (1809–1852). Autor russo de origem ucraniana, Gógol mergulha aqui no folclore, na história e na mitologia dos cossacos da Pequena Rússia (atual Ucrânia), trazendo à tona valores como a bravura, o amor à pátria, o sacrifício e a tragédia familiar. Embora seja um romance curto, dividido em apenas três partes, Tarass Bulba transborda epicidade, intensidade dramática e críticas políticas e morais que permanecem vigorosas até hoje.


Contexto histórico e literário

A Rússia do início do século XIX e o olhar de Gógol

No início do século XIX, o Império Russo buscava afirmar sua identidade nacional, ao mesmo tempo em que enfrentava tensões internas e ameaças externas (como as Guerras Napoleônicas). Gógol, nascido em 1809 na Ucrânia — então parte do Império Russo —, conhecia de perto a cultura cossaca: seus costumes, lendas, danças e canções. Ao escrever Tarass Bulba, ele reaviva essa memória coletiva, conferindo prestígio literário a um povo que, para o leitor russo da época, podia parecer bárbaro ou folclórico, mas que Gógol destaca como protetor da fronteira sul do império.

O romantismo e o gótico em Gógol

Embora Gógol tenha afinidades com o romantismo (valorização dos elementos folclóricos, do herói popular, do sobrenatural), Tarass Bulba mescla também traços do gótico: cenas de batalha macabras, execuções cruéis e presenças sinistras. Essa combinação cria um clima épico, onde a glória e o horror se cruzam sem piedade.


Estrutura e enredo

Divisão em três partes

O romance é dividido em três partes curtas, mas intensas:

  1. Parte I: Apresenta os jovens cossacos no internato religioso, o encontro de Tarass Bulba com seus filhos e suas iniciativas para restaurar a ordem cossaca.
  2. Parte II: Foca bastante nas batalhas contra poloneses (na época, a nobreza polonesa controlava vastas áreas da Pequena Rússia), descrevendo com riqueza de detalhes estratégias de guerra, feitos heroicos e, sobretudo, o vínculo indissolúvel entre Tarass e seu povo.
  3. Parte III: Traz o desfecho trágico para os filhos de Tarass — principalmente para Andriy, que trai sua pátria e se envolve romanticamente com uma aristocrata polonesa — e culmina na vingança sangrenta e na morte final de Tarass Bulba.

Resumo narrativo

Parte I: O recomeço dos cossacos

Tarass Bulba, cossaco veterano, envia seus dois filhos, Andriy e Ostap, ao seminário em Kiev, para que aprendam religião e escrita. A intenção do pai, porém, sempre foi mantê-los próximos às tradições cossacas. Quando Tarass retorna para buscar os filhos, encontra-os maduros: Andriy, sensível e romântico; Ostap, mais obediente e corajoso. Tarass convence-os a deixarem o seminário e se alistarem no exército do Hetman Doroshenko para lutar contra a dominação polonesa.

Parte II: As campanhas militares

Os três retornam ao acampamento cossaco nas margens do Dnieper. Aqui, Gógol descreve com detalhes as reuniões no conselho (rada), as danças cossacas ao som de bandura, a fé no “Deus dos Cossacos” e o orgulho do povo livre. Tarass Bulba lidera batalhas, revelou-se um guerreiro habilidoso e implacável. Ostap se destaca como soldado fiel; Andriy, mais romântico, sente admiração pelos poloneses, mas ainda combate ao lado do pai. A convivência no acampamento aumenta o apego dos filhos às tradições e à camaradagem cossaca.

Parte III: A traição e a vingança

No auge da glória, Andriy presencia uma nobre polonesa — parente do comandante inimigo — fixa os olhos nele. Há um amor à primeira vista. Ele acaba abandonando o campo cossaco e se refugia na mansão polonesa, apaixonado pela moça. Para Gógol, esse ato representa a traição suprema: Andriy troca a lealdade à pátria pela paixão profana.

Tarass Bulba descobre a traição e, enfurecido, destrói sozinho um reduto polonês para resgatar os cossacos capturados. Há batalhas sangrentas, extermínio de civis poloneses e descrições de brutalidade quase cinematográfica. No final, Ostap é capturado vivo pelos poloneses e decapitado publicamente — um momento de dor intensa para Tarass. A morte de Ostap se torna o estopim para a fúria final de Tarass: ele se entrega ao inimigo, é torturado, mas, até o último momento, recusa-se a renegar a causa cossaca. Tarass é queimado vivo — “Sob o sol de Satanás” queima seu corpo, mas sua alma permanece “imaculada” até o fim.


Personagens principais

Tarass Bulba

  • Figura central: representa o ideal do cossaco livre, rústico, orgulhoso, que não mede esforços para defender sua terra e suas tradições.
  • Conflito interior: embora amarre o amor pelos filhos ao amor à pátria, Tarass não hesita em condenar Andriy por seu adultério político. A lealdade à nação está acima do afeto familiar.
  • Complexidade moral: é um herói brutal, capaz de atos extremados (massacres, vingança pessoal), mas também detentor de uma moral que valoriza a liberdade e a união do povo.

Andriy Bulba

  • O jovem romântico: sensível, atraído pela cultura polonesa, acaba por trair o próprio povo por amor.
  • Tragédia pessoal: simboliza o preço da traição: tanto no plano exterior (seu pai o persegue até a morte) quanto no interior (caminha para a desilusão).
  • Símbolo: de como a paixão pode corromper ideais e destruir laços comunitários.

Ostap Bulba

  • O filho obediente: personifica a coragem, a lealdade e o espírito de sacrifício.
  • Destino trágico: sua decapitação pública é um ato de terror para intimidar os cossacos, mas também solidifica o ódio de Tarass que, movido pela perda do filho, sacrifica-se.
  • Figura simbólica: da devoção ao coletivo, da honra cossaca.

Papa-Forjaduro (o velho cúria) e Voïny

  • Papa-Forjaduro: cossaco ancião, sábio, que aconselha Tarass e seus filhos — representa a tradição inabalável.
  • Voïny: outro guerreiro veterano, serve de contraponto na cena de tortura de Tarass, mostrando que, para o inimigo, ele se tornou apenas mais um bárbaro.

Temas e motivações centrais

Liberdade e identidade nacional

A figura do cossaco livre, vivendo nas estepes, com sua língua, seus costumes, é exaltada por Gógol como guardiã da autenticidade russa-ucraniana. A lealdade ao grupo, à “voz dos antepassados” — a “voz do Dnieper” —, está acima dos desejos individuais. Tarass Bulba vive para manter essa liberdade, negando-se a aceitar a dominação estrangeira.

Lei do mais forte e brutalidade da guerra

Gógol não romantiza a guerra: descreve as facas ensanguentadas, a tortura de prisioneiros, massacres de inocentes. A violência é crua e cruel, mas faz parte da lógica implacável dos conflitos: “Quem não pode manter-se em guerra adentra a paz, mas perde a identidade”, parece dizer o autor.

Conflito entre amor e dever

A relação entre Tarass e Andriy sintetiza o dilema: o amor paterno se choca com o dever para com a pátria. Andriy, ao trair a causa, rompe o código de honra cossaco; torna-se, para Tarass, mais inimigo do que um filho. O sacrifício final de Tarass (ao recusar aceitar a traição, sacrificando-se na fogueira) é a declaração extrema desse valor: a honra cossaca está acima de tudo.

Misticismo e crença popular

Gógol insere elementos folclóricos: a fé no “Deus dos Cossacos”, ritos de purificação, superstições em torno das batalhas. A natureza, por vezes, é palco de presságios (tempestades no Dnieper, eclipses que prenunciam sangue). Essa religiosidade rústica reforça a ideia de um “mistério” que envolve o destino dos personagens.


Estilo e linguagem

Prosa enxuta e carregada de imagens

Diferente das descrições longas e detalhadas de alguns romancistas russos, Gógol é conciso. Cada palavra carrega peso dramático e simbólico. Ele opta por longos parágrafos descritivos que condensam atmosfera, porém sem perder a fluidez.

Diálogos intensos

Os diálogos são diretos e revelam rapidamente o caráter dos personagens. O tom solene, às vezes quase bíblico, combina com a grandiosidade épica da trama.

Ritmo narrativo

Apesar do tom épico, o andamento da narrativa é relativamente rápido. Não há digressões extensas nem subtramas paralelas: a ação se move diretamente aos conflitos centrais, sempre pontuada por cenas de batalha e dilemas morais.


Aspectos culturais e políticos

Nacionalismo e imperialismo russo

Gógol escreveu para um público russo que valorizava o espírito cossaco como símbolo de resistência contra invasões (poloneses, turcos, tártaros). O romance reforça a ideia de que a segurança do império dependia desses guerreiros livres das estepes. Em certa medida, o livro justifica uma expansão militar russa — ainda que Gógol, em outras obras, critique o autoritarismo czarista.

Reflexões éticas e morais

Mesmo exaltando a violência contra inimigos, Gógol também deixa transparecer a tragédia humana. A execução de Ostap diante de Tarass, por exemplo, não é apenas uma vitória militar: é um ato de terror que fere a alma do próprio vitorioso. Assim, o autor sugere uma ambiguidade moral: a vitória pelo método violento não traz verdadeiro orgulho, mas cicatrizes profundas.

Identidade ucraniana versus identificação russa

Embora escrito em russo e publicado em São Petersburgo, Gógol defende as tradições ucranianas. Seus personagens falam dialeto cossaco, cantam canções folclóricas e mantêm costumes que diferem da elite russa. Essa ênfase na cultura local serviu de base para posteriores reivindicações de identidade ucraniana e, ao mesmo tempo, reafirmou ao público russo uma imagem de seus vizinhos meridionais como valorosos protetores das fronteiras.


Recepção e legado

Primeiras reações

A recepção inicial de Tarass Bulba foi mista. Alguns críticos saudaram o vigor épico e a originalidade temática; outros consideraram a violência exagerada e temeram que exaltasse o militarismo. A segunda versão (1842) cortou cenas consideradas “excessivamente criminais” e emendou certos trechos para atender a uma sensibilidade mais moralista.

Influência literária

A obra inspirou não apenas escritores russos posteriores (Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov), mas também autores de outras tradições que exploraram a figura do cossaco e do “homem selvagem” em contraste com a civilização. Filmes, quadros e peças de teatro baseados em Tarass Bulba perpetuam seu valor cultural até hoje.

Interpretações contemporâneas

No século XXI, a leitura de Tarass Bulba ganhou nuances diferentes:

  • Questões de identidade nacional: em meio à crise entre Rússia e Ucrânia, o romance ressurge como documento sobre as origens e as lutas cossacas.
  • Crítica à violência: leitores modernos percebem nas cenas de massacre uma advertência sobre o ciclo interminável de ódio étnico.
  • Reflexão sobre a família: o conflito entre Tarass e Andriy é lido como metáfora do embate entre gerações — entre velhas tradições e juventude seduzida pela modernidade ou pelo “inimigo”.

Tarass Bulba é um clássico que combina epicidade histórica, drama psicológico e crítica social com maestria. Nikolai Gógol constrói personagens inesquecíveis — Tarass, Ostap e Andriy — e os lança num mundo implacável, onde a lealdade à pátria se choca com os imperativos do afeto familiar, e onde a vontade de poder transforma amigos em inimigos.

A narrativa ensina, sobretudo, que a linha que separa “herói” de “bárbaro” é tênue. Tarass Bulba é, ao mesmo tempo, símbolo da coragem e da unidade de um povo, e protagonista de atos de violência que chocam — mas também espelham a brutalidade histórica que frequentemente se oculta sob bandeiras nobres.

Para o leitor contemporâneo, o livro continua atual: ensina sobre os perigos do ódio étnico, sobre como a honra pode se tornar vingança, e sobre a complexidade dos laços familiares quando colocados diante das exigências de uma causa maior. Em sua prosa concisa, enxuta e, ao mesmo tempo, grandiosa, Gógol nos leva a refletir: até onde vale a pena lutar pelo que se acredita, e quando a violência se torna o próprio veneno que destrói o homem?


Fontes de consulta adicionais (em inglês e português):

  • GÓGOL, Nikolai. Tarass Bulba. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora Ponto, 2010.
  • MAGUIRE, Robert. Nikolai Gogol: The Man and His Work. London: Oxford University Press, 1984.
  • WILT, Judith. Inventing the “Native”: Local Narratives and Colonial Identities in Antebellum-Quebec. London: McGill-Queen’s University Press, 1995 (capítulo sobre Gógol).
  • ZILBOORG, Caroline. “Taras Bulba and the Idea of the Cossacks” em PMLA, vol. 58, n.º 4, 1943.
  • PAVLOV, Andrei. Gogol’s “Taras Bulba”: Narrative Strategies and Ideological Conflicts. Berlin: De Gruyter, 2009.

Essas leituras aprofundam tanto o contexto histórico e literário de Gógol quanto as múltiplas interpretações possíveis de Tarass Bulba.


Até mais!

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