O chimarrão, também chamado de mate (quando servido frio ou em outras regiões), é muito mais do que uma bebida para os povos do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, partes do Mato Grosso do Sul e até do Uruguai e Argentina. Para o gaúcho, o chimarrão representa a amizade, a hospitalidade, o respeito às tradições e a conexão com a cultura de seu povo. Neste artigo, vamos explorar a origem do chimarrão, suas características, o ritual de preparo e consumo, seu significado social e simbólico, além de suas eventuais variações e benefícios.


Origem e história do chimarrão

A erva-mate e os povos nativos

A planta Ilex paraguariensis, conhecida como erva-mate, cresce espontaneamente nas matas da região sul do Brasil, nordeste da Argentina, Paraguai e Uruguai. Antes da chegada dos colonizadores europeus, diversos povos indígenas — como os guaranis, os kaingang e os xokleng — já consumiam folhas de mate em infusões, apreciando tanto o sabor quanto os efeitos estimulantes da bebida. Esses povos já preparavam a infusão em cuias e utilizavam canudos metálicos ou de bambu para sorver o líquido quente.

A difusão entre os missionários e colonizadores

No século XVII, quando jesuítas espanhóis e portugueses estabeleceram missões na região das missões jesuíticas (atual região missioneira entre Brasil e Argentina), aprenderam dos indígenas sobre a preparação do mate. Os missionários passaram a cultivar a planta em roças, difundindo seu uso entre colonos e açorianos que chegavam ao sul do Brasil. Com a expulsão dos jesuítas, esses roceiros seguiram adiante, estabelecendo as primeiras plantações de erva-mate comercial.

O chimarrão na cultura gaúcha

Ao longo do século XIX, com o desenvolvimento das estâncias (fazendas) e a consolidação do gaúcho como figura emblemática do pampa, o chimarrão se tornou companheiro indispensável nas longas jornadas a cavalo, nos acampamentos e nos encontros nas comunhas (pequenas comunidades isoladas). Até hoje, ele simboliza o hino à liberdade, ao companheirismo e à vida rural.


Componentes e utensílios do chimarrão

A erva-mate


  • Qualidade e tipo: Existem várias marcas e tipos de erva-mate, com cortes mais finos ou mais grosseiros, marketing orgânico ou convencional, adição de folhas novas (mais suaves), etc.
  • Origem regional: No Rio Grande do Sul, destacam-se as ervas produzidas na região noroeste (Campos de Cima da Serra) e na região dos Aparados da Serra. Marcas como “Pilão”, “Barão”, “Campanário” e “Canoinhas” são consideradas de bom custo-benefício.
  • Erva-nativa x erva-terra indígena: Algumas denominações enfatizam o “cultivo sustentável” e a colheita tradicional em áreas de preservação, reforçando o vínculo com o legado indígena.

A cuia

  • Material original: Tradicionalmente, a cuia é feita do fruto seco da planta Crescentia cujete, que dá um formato arredondado, com uma casca leve e resistente.
  • Variedades modernas: Hoje há cuias de madeira, cerâmica, inox e até acrílico. No entanto, muitas pessoas afirmam que o gosto autêntico só se obtém na cuia de porongo (tucum) — como os gaúchos chamam o fruto de cuia.

A bomba

  • Estrutura: Metal (inox, alpaca ou prata) com filtro na ponta.
  • Função: Impede que a erva suba até a boca, ao mesmo tempo em que permite sorver o chimarrão quente com suavidade.
  • Manutenção: Limpeza diária é essencial para evitar entupimentos ou acúmulo de resíduo de mate.

A água e a chaleira

  • Temperatura ideal: Entre 70 °C e 80 °C. A água não pode ferver (100 °C), pois queimaria a erva, deixando o sabor amargo.
  • Chaleiras tradicionais: Algumas pessoas utilizam chaleiras de cobre ou ferro, acreditando que preservam melhor a temperatura; outras preferem as elétricas com ajuste de temperatura.

Ritual de preparo e consumo


Preparando a cuia (curtir a cuia)

  1. Seleção: Escolha uma cuia de superfície lisa e sem rachaduras.
  2. Limpeza: Encha a cuia com água morna e deixe repousar por algumas horas para amaciar o porongo e eliminar resíduos da produção.
  3. Secagem: Após a curtida inicial, deixe a cuia secar completamente em local fresco e arejado.

Montagem passo a passo

  1. Colocar a erva: Encha até cerca de 3/4 da cuia com erva-mate.
  2. Formar a montanha: Incline a cuia de lado, de modo que a erva fique inclinada, criando uma “montanha” de erva no alto e um “vale” livre ao lado oposto.
  3. Inserir a bomba: Posicione a bomba na parte inferior do “vale”, encostando o filtro na parede interna da cuia, sem mexer a erva.
  4. Adicionar água fria: Coloque um pouco de água natural no fundo do vale para hidratar apenas essa porção de erva. Deixe absorver por alguns segundos.
  5. Adicionar água quente: Com cuidado, despeje água quente (70–80 °C) no mesmo “vale”, sem molhar o topo da erva.

O modo de tomar chimarrão

  • Rodízio (Roda de chimarrão): Em geral, o dono da cuia (cedente) “prepara” o chimarrão, toma a primeira rodadinha — para conferir temperatura e sabor — e passa a cuia para a pessoa à direita, seguindo no sentido horário.
  • Beber até o fim: Cada pessoa bebe todo o líquido disponível até ouvir o som de arborização (quando a bomba vai sugar o ar). Então devolve ao cedente, que completa a cuia com água quente e repassa ao próximo.
  • Etiqueta:
    • Não mexer a bomba bruscamente.
    • Não reclamar do gosto: se a erva estiver fina demais ou ruim, o cedente deve providenciar outra.
    • Não colocar dedos na parte interna da cuia ou na erva já úmida, para não contaminar.

Significado social e simbólico

Chimarrão como símbolo de hospitalidade

Quando um gaúcho oferece chimarrão, diz-se que está abrindo o coração, mostrando confiança e amizade. Em reuniões familiares, no chimarródromo (local de chimarrão), em encontros de peões no campo, em rodas políticas ou culturais — o chimarrão une as pessoas, favorece a conversa franca e a troca de ideias.

O chimarrão na tradição gaúcha

  • Simbolismo do gaúcho: Na cultura do Rio Grande do Sul, o gaúcho pega sua cuia e bomba logo pela manhã, antes de cavalgar para o campo ou trabalhar na estância. O chimarrão é o primeiro passo de uma rotina que reafirma suas raízes rurais, seu amor pela terra e pela liberdade.
  • Rituais comunitários: Festivais de chimarrão, campeonatos de preparo de chimarrão mais forte, oficinas em escolas para ensinar a “arte de tomar chimarrão” — tudo isso faz parte da afirmação de uma identidade regional.

Chimarrão e filosofia de vida

O chimarrão exige paciência (para deixar a erva hidratar), e revela valores como o compartilhar. Ao contrário do café, que se bebe rapidamente e muitas vezes só, o chimarrão é a bebida do convívio prolongado. É comum ouvir que “a cuia espera” — ou seja, ela só vai para a próxima mão quando a pessoa terminar seu gole por completo, respeitando a calma e a conversa.


Variações e curiosidades

Chimarrão amargo, doce ou misto?

  • Chimarrão amargo: Apenas a erva-mate pura, sem adição de nada.
  • Chimarrão doce (mimosa): Adiciona-se uma pequena porção de açúcar antes da água quente.
  • Chimarrão misto (chimarrão de açúcar): Mistura de açúcar com erva, mas sem adoçar demais — comum em quem está aprendendo a apreciar o sabor original.

Chimarrão gelado (“tereré”)

No Paraguai e no Mato Grosso do Sul, a infusão de erva-mate é tomada com água gelada, às vezes até com gelo e limão. Essa variação se chama tereré. Embora diferente do chimarrão tradicional (quente), compõe a mesma família de bebidas de erva-mate, trazendo refrescância em dias mais quentes.

A erva fresca e a tradicional

  • Erva-tradicional: Evaporação lenta, sabor mais amargo, longevidade maior na cuia.
  • Erva-fresca (chimarrão verde): Mais recente no mercado, tem sabor mais suave, folhas mais verdes e corte mais grosso. Acha-se que rende menos rodadas, mas agrada iniciantes pela doçura natural.

Cuias artísticas e colecionáveis

Alguns artesãos produzem cuias talhadas, pintadas com motivos gaúchos, brasões de famílias ou representações de animais do pampa. Essas cuias de artesanato — às vezes em cuia de porongo, em cerâmica ou até em ossos de animais — agregam valor cultural e econômico, tornando-se itens de colecionador.


Benefícios e cuidados com o chimarrão

Compostos benéficos da erva-mate

  • Cafeína (mateína): Estimulante que melhora o estado de alerta, porém em doses controladas costuma causar menos ansiedade.
  • Vitaminas e minerais: Fontes de vitamina C, complexo B, potássio, magnésio e fósforo.
  • Antioxidantes: Polifenóis que ajudam a combater radicais livres.
  • Efeitos diuréticos e digestivos: Tradicionalmente usado para auxiliar na digestão e na eliminação de toxinas.

Cuidados e contraindicações

  • Temperatura da água: Evitar água fervente (100 °C), pois queima a erva, liberando compostos amargos e potencialmente irritantes para o estômago.
  • Consumo exagerado: Muito chimarrão ao longo do dia pode causar insônia ou aumento de ácido estomacal em pessoas sensíveis.
  • Exposição ao alumínio: Chaleiras de alumínio antigas podem liberar resíduos; é melhor usar chaleiras inox ou com revestimento.
  • Problemas renais: Quem tem insuficiência renal deve moderar o consumo, pois o efeito diurético pode sobrecarregar a função.

O chimarrão no século XXI: tradição e inovação

A reinvenção cultural

Nas últimas décadas, o chimarrão deixou de ser apenas “bebida de gaúchos” para se tornar um símbolo de brasilidade. Cafés urbanizados, lanchonetes e até food trucks oferecem chimarrão, com cuias ornamentadas e bombas personalizadas. Existem escolas e workshops para ensinar turistas estrangeiros a “não errar” ao preparar uma cuia.

Chimarrão na gastronomia

Chefs gaúchos criam receitas que incorporam a erva-mate:

  • Sorvete de chimarrão: Infusão de erva para gelar, produzindo notas herbáceas.
  • Molhos e marinadas: Para carnes, reforçando a identidade regional em restaurantes de alta gastronomia.
  • Chás mistos: Combinações de erva-mate com ervas aromáticas (hortelã, cidreira) para novos públicos.

Sustentabilidade e mercado global

Com a crescente demanda exportadora, produtores enfatizam a colheita sustentável, a certificação orgânica e o comércio justo. Cooperativas de pequenos assentamentos rurais buscam valorizar a produção familiar de erva-mate, promovendo a preservação das matas nativas e a melhoria de vida nas comunidades.


Conclusão: o chimarrão como patrimônio imaterial

Mais do que um simples hábito de consumo, o chimarrão é patrimônio cultural imaterial do Rio Grande do Sul e de outras regiões do Sul do Brasil. Ele reflete a história dos povos originários, a saga dos colonos, a alma dos gaúchos e a hospitalidade de um povo que sabe valorizar a roda compartilhada, a fé nas árvores nativas e o sabor da água quente que aproxima corações.

Em cada cuia, há um convite ao convívio: a “rodada” demonstra respeito — quem recebe a cuia, sabe que, ao finalizar, deve reconhecer o cuidado de quem a preparou, agradecendo e sendo grato por aquele gesto de amizade. O chimarrão, assim, segue unindo famílias, laços de amizade e reafirmando a identidade de um povo que se orgulha de suas tradições, mas também se reinventa para o futuro.


Até mais!

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