Publicado pela primeira vez em 1857, O Guarani, de José de Alencar, é uma das obras mais emblemáticas da literatura brasileira do século XIX e um marco da Primeira Geração do Romantismo no Brasil. Esta fase do Romantismo é caracterizada por um forte nacionalismo, valorização da natureza e exaltação do indígena como herói nacional, servindo como instrumento para a construção de uma identidade cultural brasileira recém-independente de Portugal.


Enredo

Ambientado no século XVII, durante o período colonial, o romance narra a história de Peri, um índio da tribo Goitacá, que vive próximo à casa de Dom Antônio de Mariz, um fidalgo português que se instalou no interior do Brasil com sua família. A filha de Dom Antônio, Cecília, é alvo da proteção e devoção absoluta de Peri, que a salva de diversos perigos ao longo da narrativa. Ao mesmo tempo, ameaças externas se aproximam, como um grupo de aventureiros ambiciosos e traições internas que colocam em risco a segurança da família Mariz.

O relacionamento entre Peri e Cecília é sutilmente romântico, mas idealizado, pautado por valores como castidade, lealdade e sacrifício. O clímax da obra se dá quando Peri, para salvar Cecília, explode a casa tomada pelos inimigos, escapando com ela pela mata — símbolo de sua união heroica e espiritual.


Indianismo e o Herói Idealizado

Um dos aspectos centrais de O Guarani é o indianismo, traço marcante da Primeira Geração do Romantismo. A figura do índio é transformada em herói nacional, símbolo da pureza e bravura do Brasil primitivo. Peri é o exemplo mais claro desse processo: um personagem construído não como um indígena real, com seus traços culturais próprios, mas como um ser quase mitológico, moldado à imagem de cavaleiros medievais europeus — valente, honrado, altruísta.

Essa idealização visa criar um mito fundador brasileiro, substituindo os heróis europeus por figuras locais, ao mesmo tempo em que resgata o indígena como protagonista da história nacional. No entanto, essa representação é repleta de contradições: ao passo que exalta o índio, também o submete à lógica e aos valores europeus, como se apenas por meio da renúncia à sua cultura pudesse alcançar o heroísmo e a aceitação.


Nacionalismo e Ufanismo

O romance de Alencar é profundamente nacionalista. Ele busca exaltar a grandiosidade da terra brasileira — suas florestas, rios, fauna e flora são descritos com um lirismo intenso e detalhado, funcionando como uma ode ao território nacional. A natureza, sempre presente, não é apenas pano de fundo, mas personagem ativa e simbólica da narrativa.

Esse ufanismo — amor exaltado à pátria — é típico da Primeira Geração romântica, que via na literatura um instrumento para afirmar a identidade e os valores de um Brasil independente, distinto da antiga metrópole portuguesa. Nesse sentido, O Guarani cumpre uma função não apenas literária, mas também política e ideológica.


Estilo e Linguagem

A linguagem de José de Alencar é requintada, marcada por descrições exuberantes e uma sintaxe elaborada. As passagens que descrevem a paisagem brasileira são particularmente poéticas, refletindo a estética romântica, que privilegia o sentimento, o subjetivismo e a idealização.

Os diálogos, por sua vez, são formais e carregados de simbolismo, especialmente nas interações entre Peri e Cecília. A linguagem elevada serve para reforçar o caráter puro e quase sagrado da relação entre eles, destacando o ideal romântico do amor platônico e espiritualizado.


Relações de Gênero e Raça

Embora O Guarani tenha como intenção valorizar o indígena, sua representação não escapa de estereótipos e de uma perspectiva eurocêntrica. Peri, ao longo da narrativa, vai progressivamente se “civilizando”, aproximando-se dos valores e comportamentos europeus, inclusive convertendo-se ao cristianismo para melhor servir à família Mariz. Sua identidade indígena é, assim, apagada em favor de uma idealização heroica moldada aos padrões ocidentais.

Cecília, por sua vez, é a encarnação da mulher romântica ideal: pura, delicada, angelical e passiva. Ela representa a donzela a ser protegida, sem autonomia própria, sempre subordinada às decisões e ações masculinas. A relação entre Peri e Cecília, embora marcada por respeito e afeição, reproduz a estrutura patriarcal e hierárquica da época.


Crítica e Legado

O Guarani foi um enorme sucesso de público no século XIX e permanece como leitura obrigatória nas escolas brasileiras. Sua importância histórica e literária é inegável, pois contribuiu para a formação de um imaginário nacional e para a consolidação do romance como gênero no Brasil.

No entanto, a obra tem sido alvo de críticas contemporâneas, sobretudo no que diz respeito à forma como retrata os indígenas. A construção de Peri como um herói idealizado e desprovido de identidade cultural própria revela mais sobre a visão do autor — e da elite letrada da época — do que sobre os povos indígenas reais. Em vez de dar voz ao índio, o romance o transforma em símbolo, apagando sua complexidade e humanidade.

Ainda assim, é preciso reconhecer que, dentro do contexto em que foi escrito, O Guarani representou um esforço legítimo de construção de uma literatura autenticamente brasileira, em oposição ao colonialismo cultural europeu. Alencar buscou criar mitos nacionais e exaltar a natureza e o povo da nova nação, mesmo que o tenha feito por meio de idealizações.


Conclusão

O Guarani é uma obra fundamental da literatura brasileira, representando com clareza os valores e ideais da Primeira Geração do Romantismo. Com sua linguagem poética, enredo aventuresco e heroísmo idealizado, o romance combina entretenimento com um projeto nacionalista de afirmação cultural.

Ao exaltar o indígena como herói, a natureza como cenário épico e o amor puro como ideal romântico, José de Alencar criou um clássico que, mesmo com suas limitações, continua a suscitar debates importantes sobre identidade, representação e literatura. Ler O Guarani hoje é também refletir sobre os mitos fundadores do Brasil e sobre como eles ainda influenciam a forma como o país se vê — e é visto — no presente.


Até mais!

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