Publicado originalmente em 1945, Infância é um dos relatos autobiográficos mais pungentes da literatura brasileira. Nele, Graciliano Ramos (1892–1953) reapresenta, em prosa enxuta e direta, as marcas de sua própria infância vivida em Quebrangulo, pequeno município de Alagoas. Embora seja considerado obra menor em relação ao seu célebre Vidas Secas, Infância traz, em suas cerca de cem páginas, a intensidade de uma experiência singular, marcada pela pobreza, pela religiosidade popular e pela formação precoce de um olhar crítico sobre a realidade nordestina.
Nesta resenha, a análise é dividida em quatro partes: 1) contexto de produção e relação com a obra de Graciliano Ramos; 2) resumo do conteúdo e principais episódios; 3) personagens, estilo literário e temas centrais; 4) avaliação crítica e legado.
Contexto de produção e relação com a obra
O autor e sua trajetória
Graciliano Ramos é um dos grandes nomes do Modernismo de 1930 no Brasil. Autor de romances fundamentais como São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas Secas (1938), ele se notabilizou por uma prosa seca, econômica, carregada de tensão e crítica social. Originário de família pobre do sertão alagoano, passou parte da juventude em Viçosa e Maceió, antes de se tornar professor, funcionário público e, mais tarde, prefeito de Palmeira dos Índios.
Embora sua fama se dê sobretudo pelos romances de ficção, Graciliano deixou também um pequeno, porém significativo, conjunto de textos autobiográficos: Memórias do Cárcere (publicado postumamente em 1953), onde narra sua prisão política em 1936/37; e Infância (1945), dedicado à sua experiência pueril. Ambos os relatos autobiográficos se distinguem da ficção pela urgência de compartilhar uma memória íntima como forma de explicitar as origens pessoais que subjazem à obra literária.
Publicação e recepção
Infância foi publicado em 1945 pela editora José Olympio, num momento em que Graciliano se aproximava da maturidade literária já consolidada. Embora hoje seja leitura frequente em escolas e universidades, nos anos 1940 o livro teve recepção moderada: muitos críticos e leitores, acostumados ao estilo mais áspero de seus romances, estranharam a face mais nostalgica e poética do autor. Com o tempo, porém, Infância passou a ser valorizado como uma obra cuja simplicidade aparente encobre profundidade psicológica e densidade social.
Resumo do conteúdo e principais episódios
A voz narrativa e o cenário
O narrador é uma criança que vive com a família em Quebrangulo, cidade à beira do Rio Mundaú, no sertão alagoano. O texto não se atém a uma cronologia rigorosa, mas persegue episódios diversos que compõem o universo infantil: festas de São João, rezas de novenas, as lendas sussurradas pelos adultos, as brincadeiras com colegas e as primeiras impressões sobre a pobreza que circunda sua casa.
Elementos centrais de cada capítulo
Embora Infância não seja estruturado em capítulos formalmente divididos, pode-se identificar blocos temáticos que se combinam de modo fluido:
O cotidiano doméstico e o pai ausente
- O livro se abre com a descrição da pequena casa de taipa, da madeira gasta, do cheiro de fumo e rapadura. O pai do narrador, funcionário público, costuma desaparecer por dias em viagens ou na cidade vizinha, deixando a mãe no comando da família. A figura paterna é ambígua: ao mesmo tempo em que é respeitada como autoridade, também é isolada pela dureza de caráter e pelas ausências constantes.
A mãe e a prática religiosa
- A mãe, quase sempre doente, mas devota fervorosa, toma conta dos rituais domésticos: novenas, rezas e visitas à igreja. Ela transmite ao filho a imagem de Deus como figura de amor e temor. O narrador assiste às memórias de morte, ao temor do inferno, mas também à esperança no céu — dualidade que se refletirá no amadurecimento posterior de Graciliano.
As festas juninas e as festas de padroeiro
- A narração evoca a “festa de São João” com fogueiras, danças, quadrilhas improvisadas e comidas típicas (milho-da-vaca, canjica). A alegria comunitária convive com a miséria material: a falta de sapatos, o cansaço das mulheres preparando quitutes sob sol inclemente. É um momento de comunhão, mas também de contraste social — enfatizando a pobreza coletiva.
A escola e a aprendizagem primária
- A experiência escolar do narrador transparece o choque entre o mundo infantil e a dureza do ensino: o professor autoritário, as lições de calar a boca, o rigor para escrever cada letra. A ambiência da escola de taipa, sem carteiras adequadas e com poucos livros, contrasta com o desejo de aprender do menino. Surge ali a percepção de que a educação é caminho para escapar da pobreza, mas também campo de infelicidade — doloroso, árduo e marcado por punições físicas (rapapés e palmadas).
As brincadeiras e as travessuras
- Há episódios em que o menino e seus amigos soltam pipa, brincam de “soldadinho” às margens do rio, tentam nadar em corredeiras traiçoeiras, se sujam de terra e se alimentam de frutas silvestres. O texto transmite a liberdade rústica do sertão, mas não esquece os perigos: mortes de colegas afogados, febre que ataca crianças e a sempre presente escassez de remédios.
Primeiros “golpes” da realidade
- O narrador testemunha a morte de um irmão menor, vítima de febre mal curada. A imperícia médica de lugar remoto, a impossibilidade de comprar remédios caros e a tentativa frustrada de cura marcam o menino com a noção de que a pobreza mata. A imagem da mãe, soluçando diante do corpo do filho, marca o início de uma tristeza que amadurecerá como melancolia pessoal do narrador.
Viagens e paisagem sertaneja
- Em alguns trechos, o menino acompanha o pai em viagens curtas a cidades vizinhas, descobrindo ônibus de madeira, estradas de areia vermelha e a vastidão do sertão. O contraste entre a paisagem aparentemente “branca” (céu e nuvens) e o solo seco reforça a sensação de “invisível hostilidade”: céu e terra não se combinam para nutrir a vida. Essas descrições antecipam o lirismo duro que Graciliano aplicaria em Vidas Secas.
A “primeira comunhão” e a iniciação religiosa
- O rito da primeira comunhão aparece como rito de passagem. O menino experimenta misto de orgulho e medo ao vestir-se de branco, ajoelhar-se junto a outros menores no adro da igreja, receber a hóstia. A reverência — ainda que repetitiva — abre caminho para uma relação fusional com Deus, que se dissolverá na idade adulta.
Final aberto e memórias em suspensão
A narrativa não encerra com uma lição explícita, mas deixa o leitor com a sensação de continuidade: o menino narrador, ao final do livro, ainda carrega a infância na pele, nas lembranças confusas e na saudade de um tempo que se funda em alegria e dor. Em última análise, Infância termina sem um desfecho linear, pois a própria infância — recurso literário de Graciliano — permanece inacabada até a maturidade que o romance precede.
Personagens, estilo literário e temas centrais
Principais personagens
O narrador-menino
- Identidade: não tem nome no texto, mas é facilmente assimilado como a versão literária de Graciliano Ramos.
- Traços psicológicos: ingênuo, mas já dotado de certa maturidade — percebe injustiças e sofre com a fragilidade dos adultos. Seu olhar alterna entre curiosidade (desejo de entender o mundo) e deslumbre (beleza da paisagem e das festas).
- Importância narrativa: a infância, no romance, não é idealizada; ao contrário, mistura doçura e crueldade, criando o que muitos críticos chamam de “realismo poético”.
A mãe
- Descrição: dona de casa de saúde frágil, devota, generosa e resignada.
- Função simbólica: carrega o fardo da pobreza com devoção religiosa, alimenta o menino com histórias de santos e de sofrimento redentor. Ela é santo e mártir em miniatura, gerando em seu filho uma fé mestiça de esperança e dor.
O pai
- Descrição: funcionário público de pouca postura afetiva, às vezes correoso, mas generoso em suas posses modestas.
- Função simbólica: simboliza a autoridade do patriarca sertanejo, durão no tratamento dos filhos, mas falho como provedor (as viagens constantes para ganhar um trocado expõem a mãe e os filhos à dureza da vida sem pai). Representa também o ideal de um homem que almeja ascender socialmente, mas esbarra em limites econômicos.
Irmãos e familiares
- A presença de irmãos mais novos, alguns deles morrendo por doenças banais, serve para ilustrar a precariedade do atendimento médico e a tragédia cotidiana do sertão.
- Avós, tios e vizinhos aparecem em esquemas de solidariedade mútua: reúnem-se para enterrar mortos, dividem comida, se revezam na preparação de orações e novenas.
Colegas de escola e brincadeiras
- Amigos e rivais de infância mostram a mescla de carinho e violência típica dos meninos: tapas, desafetos, mas também cumplicidade em enfrentar desafios (tomar banho no rio, fugir de cobra).
- Esses personagens reforçam a formação social do narrador, sugerindo que o “coração de sertanejo” se funda em laços de coorte e em uma certa dureza moral — o “ensejo de guerra” diante de dificuldades.
Estilo literário
Prosa enxuta e rigorosa
- Graciliano Ramos conserva em Infância o estilo seco que marca seus romances. As frases são geralmente curtas, objetivas, sem adjetivos supérfluos. A economia verbal não impede que se percebam efeitos poéticos — ao contrário, cada palavra ganha intensidade.
- O vocabulário reflete a fala popular nordestina, mas cuidadosamente filtrada pela gramática culta. O resultado é um texto em que “orelhas de menino” captam a oralidade, mas sem descambar para o regionalismo caricato.
Narrador-personagem
- A escolha de narrar em primeira pessoa (embora não apareçam “eu” em demasia, pois o foco é imanente ao mundo do menino) confere imediatismo ao relato. O leitor sente o calor do sol, ouve o chilrear das cigarras e percebe o gosto da rapadura.
- A temporalidade é fluida: memórias se misturam — um cheiro remete a outra lembrança, um detalhe de festa de São João leva a episódios de doença. O fluxo de consciência infantil constitui a espinha dorsal da narrativa.
Uso de diálogos simplificados
- As falas dos adultos aparecem sem construção frasal complexa. O menino “ouve” e registra em estilo direto ou indireto livre, mantendo a fidelidade ao tom das conversas: crendices, rezas, ditos populares e, às vezes, xingamentos acessíveis destacam a oralidade sertaneja.
Misticismo e religiosidade
- Há diversas passagens em que o menino acompanha novenas, vê a procissão de santos de madeira passando defronte à casa e ouve preces. Essas cenas compõem o “espírito religioso” que, por mais rudimentar, é profundamente arraigado na cultura local.
- A religiosidade marca o texto como construção ideológica: para o menino, Deus não é abstração, mas presença tangível na dor e na cura ocasional (ajuda de rezadeiras, benzedeiras).
Temas centrais
Pobreza e desigualdade
- A criança percebe as diferenças sociais: algumas famílias têm galinheiro, outras sobrevivem de migalhas; uns frequentam a cidade grande ocasionalmente, outros não conhecem nada além de Quebrangulo. A miséria é anunciada em cada febre infantil, em cada casa de taipa sem coberta impermeável.
Formação moral e ética
- A convivência com a dureza dos adultos força o menino a amadurecer cedo. Ele aprende a lidar com a morte, com a falta de dinheiro, com o trabalho infantil (ajuda a mãe nas tarefas, busca água no riacho). A obediência ao pai e ao professor se mistura a pequenas transgressões de meninos (furto de mangas, pescaria noturna).
Religião e superstição
- Padre, benzedeira, abade, rezadeiras e mesmo o médico itinerante formam um panteão de “salvadores”. A fé popular mistura-se com superstições: acreditar que Santo Antônio pode trazer um casamento, que o “alto varal” de pombos anuncia bom agouro. Ao final, o menino deve escolher entre confiar na ciência nascente (remédios caseiros e fórmulas rudimentares) e confiar na “graça divina”.
Inocência versus violência
- A infância retratada por Graciliano não é inocente no sentido de ingênua: o menino testemunha ofensas, brigas de adultos, golpes dolorosos no quintal. Ainda assim, mantém a capacidade de se entusiasmar com um girassol na estrada, com o salto de peixe no rio, demonstrando resiliência. Esse embate entre a pureza infantil e a violência circundante compõe o núcleo emocional da obra.
Memória e identidade
- Em tom nostálgico, o narrador-personagem (que já é adulto quando escreve) revisita o passado como “arquivado em imagens”: cada detalhe (teto de sapé, cheiro de alpercatas úmidas) alimenta um exercício de rememoração que constrói sua própria identidade. A infância funda a personalidade de Graciliano Ramos, e o livro revela como a memória, ainda imperfeita, insiste em resgatar tanto a alegria das festas quanto o horror das mortes.
Avaliação crítica e legado
Pontos fortes de Infância
Fidelidade à experiência sertaneja
- Graciliano não romantiza o sertão nem cai no truísmo de “romantizar a miséria”. Apresenta a parca beleza das paisagens áridas, mas sem torná-las exóticas. O leitor “respira” o cheiro do chão ressecado, ouve o canto do galo ao amanhecer, sente a dificuldade de caminhar longas distâncias sob sol escaldante.
Prosa exemplarmente concisa
- O autor dispensa floreios desnecessários. Cada termo é preciso, cada ponto final delimita um instante. Esse estilo, que se fez célebre em romances como Vidas Secas, já se manifesta em Infância e imprime ao texto um ritmo rítmico e poetizado.
Profundidade emotiva
- Embora a narrativa seja breve e fragmentária, as cenas dramáticas (morte de irmão, febre, castigo na escola) se imprimem na memória do leitor. A dureza do cotidiano infantil, apresentada de modo quase clínico, adquire carga emotiva precisamente por essa objetividade narrativa.
Reflexão sobre a formação do escritor
- Quem conhece a biografia de Graciliano Ramos percebe em Infância as sementes de seus temas posteriores: a atenção à miséria rural, a crítica social, o olhar para o homem simples como protagonista do enredo dramático. O livro assume valor de “manuscrito fundacional” de sua obra madura.
Limitações e pontos de crítica
Ausência de desenvolvimento psicológico mais denso
- Em comparação a romances ficcionais, Infância não se aprofunda nas motivações íntimas do narrador: ele observa, descreve e reage, mas quase nunca expõe longamente seus pensamentos. Isso pode frustrar leitores que buscam introspecção psicológica. Contudo, cabe lembrar que o livro é breve e autopublicitário, sem pretensão de romance tradicional.
Fragmentação excessiva
- A alternância de episódios desconexos e a falta de grande arco narrativo contínuo tornam o livro, por vezes, fragmentário. O leitor precisa conectar diversas cenas independentes para construir o mosaico da infância — o que exige maior esforço de leitura.
Universalidade do sofrimento infantil
- Muitos críticos apontaram que o retrato do sofrimento infantil no sertão, apesar de autêntico, reflete também um imaginário recorrente de escritores nordestinos (Raul Pompeia, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz). Há quem afirme que Graciliano, em Infância, permanece dentro da tradição do “sertão cruel” sem propor grandes inovações narrativas, ainda que sua voz própria se ressalte na concisão.
Conclusão
Infância é, antes de tudo, um documento autobiográfico que revela a génese de Graciliano Ramos como escritor e cidadão. Através do olhar de uma criança assombrada pela miséria, pela religiosidade intensa e pela violência cotidiana, somos conduzidos a revisitar as raízes nordestinas do autor, compreender as origens de seu compromisso social e captar a nascente tensão entre inocência e dureza que pautaria toda sua obra.
Embora breve e, por vezes, fragmentário, o livro apresenta a maestria do mestre na escolha de palavras exatas e na montagem de cenários rítmicos. As páginas de Infância guardam a força lírica que Graciliano aplicaria nos desertos de Vidas Secas e a virulência crítica que consumiria em Angústia. É leitura indispensável para quem deseja conhecer as raízes pessoais e estéticas do grande nome do Modernismo de 1930 no Brasil.
Em suma, Infância oferece ao leitor a experiência de revisitar, por meio da memória literária, a própria interioridade do século XX nordestino — um universo em que se aprende cedo a distinguir entre a generosidade materna, a rigidez paterna, o fervor religioso e a inevitável luta pela sobrevivência. O resultado é um livro que, embora pequeno, tem o poder de perfurar o espírito com sua “prosa do real”, deixando-nos com a sensação de que, por trás de cada página, ecoa o choro contido e a esperança resistente de uma criança que — contra todas as adversidades — aprendeu a escrever para sobreviver.
Referência bibliográfica
Ramos, Graciliano. Infância. 1. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945. Edições posteriores estão disponíveis em diversas editoras, muitas vezes incluídas em coletâneas de obras completas.
Até mais!
Tête-à-Tête

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