Publicado em 1937, A Impostura (L’Imposture) é uma das obras mais incisivas e combativas de Georges Bernanos (1888–1948), escritor e jornalista francês célebre por seu olhar crítico sobre a fé, a moral e a condição humana. Convidado a testemunhar a Guerra Civil Espanhola (1936–1939) pela revista francesa Marianne, Bernanos viu de perto o conflito entre republicanos e franquistas e se escandalizou com o comportamento dos que se diziam “defensores da fé” ao lado de Franco. A Impostura é sua denúncia apaixonada e repleta de indignação contra o que ele chama de “venda da verdade” — ou seja, a conivência de setores católicos com a violência, a opressão e a falsidade política.

Nesta resenha, apresento um breve panorama do contexto em que o livro foi escrito, resumo seus principais argumentos, destaco as estratégias literárias de Bernanos e avalio sua relevância histórica e literária. O objetivo é oferecer ao leitor uma visão global de A Impostura, respeitando tanto a profundidade da obra quanto seu poderoso tom moral e literário.


Contexto histórico e biográfico

A Guerra Civil Espanhola e o papel da Igreja

Em julho de 1936, iniciou-se na Espanha uma guerra entre as forças republicanas (defensoras do governo eleito e de reformas sociais) e os militares liderados por Francisco Franco, que contavam com o apoio de setores monarquistas, conservadores e do Vaticano. A chamada “Guerra dos Bispos” envolveu episódios de perseguição anticlerical nas zonas republicanas (com destruição de igrejas e assassinato de clérigos) e, simultaneamente, complacência — e até apoio explícito — de boa parte do alto clero espanhol e da cúria romana ao golpe franquista, que se apresentava como “guerra santa” contra o ateísmo e o bolchevismo.

Bernanos, católico fervoroso, ficou profundamente abalado ao constatar que muitos bispos, padres e organizações católicas viam em Franco não um ditador autoritário, mas o “salvador da fé” na Espanha. Para ele, essa atitude representava uma impostura moral: defender a violência política e a extermínio de inocentes em nome de Cristo era, na opinião do autor, uma grave contradição e traição ao Evangelho.


Georges Bernanos: do misticismo à denúncia social

Antes de A Impostura, Bernanos já se notabilizara por romances de temática espiritual e moral, como O Diário de um Pároco de Aldeia (1936) e Sob o Sol de Satã (1926). Ao longo de sua carreira, os temas centrais de sua obra giraram em torno da luta entre a graça e a tentação, da solidão do homem diante de Deus e da hipocrisia dos que se dizem religiosos.

Quando viaja à Espanha, Bernanos não se propõe a escrever um folheto político, mas sim a enxergar — com os olhos da compaixão cristã — a miséria e a crueldade do conflito. Em A Impostura, a poesia e o misticismo de seus romances dão lugar a um tom jornalístico e combativo, marcado por argumentos contundentes, ironia cáustica e a indignação de quem se sente traído pela Igreja que ama.


Estrutura e estilo de A Impostura

Formato e divisão do texto

A Impostura não é um romance nem um ensaio sistemático, mas um relato em estilo fragmentário, alternando crônicas, reflexões e cenas vividas por Bernanos durante sua estadia na Espanha. São capítulos curtos — às vezes pequenos textos de espírito quase ensaístico —, que podem ser lidos isoladamente, mas formam um conjunto coerente ao denunciar a mesma “impostura” de quem manipula a religião para fins políticos.

A obra foi rapidamente publicada em 1937 em Paris pela editora Gallimard, e fez grande impacto na opinião pública francesa. Bernanos revisitou alguns trechos para a edição definitiva de 1938, reforçando ainda mais o tom de denúncia.

Linguagem jornalística e retórica moral

Diferentemente de seus romances anteriores, onde predominava uma linguagem lírica-barroca e passagens místicas ― em A Impostura a prosa torna-se direta, cortante. As frases são muitas vezes curtas, parágrafos concisos, destinados a chocar e a convencer. O autor combina:

  • Descrição realista: cenas de combates, ruínas de igrejas, rumores das batalhas.
  • Relato em primeira pessoa: a experiência direta do escritor, suas conversas com padres, soldados e campônios, dando autenticidade ao testemunho.
  • Argumentos morais: Bernanos confronta os apoiadores de Franco com contradições éticas, lembrando ensinamentos evangélicos sobre amor ao próximo.
  • Ironia e sarcasmo: muitas passagens são carregadas de desprezo cortante — por exemplo, ao descrever bispos que se hospedavam em hotéis de luxo enquanto padres pobres eram assassinados nas ruas.

Esse estilo híbrido faz de A Impostura algo entre uma crônica de guerra, um ensaio teológico e um manifesto político.


Principais argumentos e reflexões

A “impostura cristã” dos apoiadores de Franco

O cerne do livro é a identificação de uma “impostura” daqueles que se dizem católicos, mas apoiam as atrocidades cometidas pelos franquistas. Para Bernanos, a verdadeira fé cristã não pode compactuar com perseguições políticas, com assassinatos de civis ou com a subserviência ao poder temporal. Ele acusa diretamente:

  • Bispos e clérigos que abençoam tropas responsáveis por massacres.
  • Organizações católicas (como a Ação Católica espanhola) que propagandeiam a guerra como “cruzada” quando, aos olhos do autor, trata-se de uma guerra fratricida.
  • Repórteres e intelectuais que apresentam Franco como herói, omitindo ou minimizando os crimes.

Em vários trechos, Bernanos questiona: “Como é possível falar de amor ao próximo e, ao mesmo tempo, celebrar a execução de prisioneiros civis, de prisioneiros de guerra incapacitados?” Ao transformar a guerra em “guerra santa”, esses “católicos” cometeriam uma falsa representação do Evangelho.

As vozes do povo e a tragédia humana

Intercalando sua fúria moral, Bernanos descreve cenas humanas: camponeses famintos, crianças órfãs, mulheres que choram sepulturas improvisadas. Esse contraste entre o humanismo real e as justificativas religiosas fraudadas aprofunda a denúncia: enquanto pregam o amor divino, muitos “defensores da fé” assistem ou incentivam massacres, trancados em salões iluminados, alheios ao sofrimento.

Ao longo do texto, Bernanos dá voz a padres humildes que, embora leais à Igreja, recusam-se a apoiar Franco, mas acabam ameaçados pelos poderosos. Ele valoriza aqueles que, no meio do caos, ainda rezam pelos oponentes, negam-se a bater outras crianças ou excomungar os que discordam.

A crítica à rendição intelectual

Bernanos acusa intelectuais e jornalistas de se curvarem ao franquismo em troca de status. Esses supostos “artistas cristãos” teriam trocado a verdade pelo elogio fácil, fazendo “o jogo do poder” ao jornalizar a guerra com parcialidade.

O autor menciona episódios em que correspondentes estrangeiros negam o bombardeio de civis ou minimizam prisões em massa para manterem credibilidade junto à cúpula católica. Para ele, essa rendição equivale a uma “traição intelectual”, pois transforma a imprensa em um órgão de propaganda política, não em fonte de informação.


Estrutura moral: a voz de Bernanos

A indignação como instrumento de escrita

Ler A Impostura é sentir a fúria moral de Bernanos em cada parágrafo. Ele não se contenta com um tom moderado: busca um efeito de choque, quer que o leitor (principalmente católico) acorde para a contradição de professar a fé num lado do conflito e ignorar ou elogiar as barbáries cometidas pelo seu próprio exército.

Essa indignação não é apenas retórica — é fruto de uma coerência de vida. Bernanos, enviado ao front, viu com seus próprios olhos o que descreve e resistiu a pressões para escrever suavemente. Sua prosa é, portanto, testemunhal e apaixonada.

A alternância entre compaixão e reprovação

Embora suas palavras sejam ásperas com os falsos defensores da fé, Bernanos nunca abandona a compaixão cristã. Ele chora ao descrever a miséria do povo espanhol, os órfãos e as viúvas. Para ele, a verdadeira fé exige solidariedade, não exclusão do “inimigo”. Assim, o texto mescla cenas de ternura (padres amparando crianças) com passagens de reprovação veemente (crítica aos prelados que apoiam Franco).

A universalidade do tema

Ainda que escrito em 1937, A Impostura transcende a Guerra Civil Espanhola. Denuncia, em termos gerais, a hipocrisia institucional que associa a fé a interesses de poder. Em qualquer época, interesses políticos instrumentalizam a religião: Bernanos parece alertar contra esse perigo permanente. Por isso, seu livro dialoga com outros críticos da aliança entre “trono e altar”, ressoando em debates sobre fundamentalismo, autoritarismo e manipulação ideológica.


Recepção e repercussão

Reação imediata

Ao ser publicado, A Impostura provocou forte poleâmica. Muitos católicos conservadores condenaram-o: acusaram Bernanos de difamar a Igreja e de ser ingênuo em seu idealismo. Já setores de esquerda e republicanos na França aplaudiram a coragem do autor em expor a face suja de quem se dizia “defensor da fé”. O livro serviu como fonte de indignação pública e acirrou o debate político-literário.

Legado literário

Caso raro de escritor cujo trabalho jornalístico alcançou a mesma perenidade de sua ficção, A Impostura consolidou a reputação de Bernanos como autor católico engajado. A obra influenciou jornalistas e escritores a enxergarem a necessidade de separar verdade religiosa de instrumentalização política. Séculos depois, ela ainda serve como referência para quem estuda a manipulação midiática em conflitos e para quem investiga a conivência entre religião e autoritarismo.


Principais lições de A Impostura

Fé exige coerência

Bernanos deixa claro que professar uma fé de caridade, amor ao próximo e justiça social obriga a recusar alianças com regimes violentos. O autêntico católico, segundo ele, não pode silenciar diante do assassinato de civis ou da perseguição de dissidentes. A fé, para ter credibilidade, precisa se traduzir em gestos concretos de solidariedade, e não em cartazes de bênçãos a generais.

Denunciar falsos profetas

Ao chamar os apoiadores de Franco de “falsos profetas”, Bernanos mostra que a crítica interna é penosa, mas necessária. Quem crê não pode temer questionar seus próprios líderes. A impostura reside em se aproveitar da boa-fé dos fiéis para encobrir crimes.

A literatura como instrumento de consciência

Bernanos exemplifica a possibilidade de um escritor intervir eticamente no debate público. Seu estilo jornalístico-poético, feito de indignação e compaixão, lembra que a literatura é, antes de tudo, um gesto de caráter moral: comunicar a verdade, se possível pela força da emoção e do testemunho direto.


Conclusão

A Impostura é um livro intenso, que exige do leitor coragem para encarar as contradições entre a fé proclamada e as ações reais de quem se diz “defensor de Deus”. Georges Bernanos constrói uma narrativa jornalística carregada de paixão, indignação e poesia amarga, capaz de desvelar a hipocrisia de clérigos, militares e intelectuais que, em nome do catolicismo, sustentaram a violência de Franco na Guerra Civil Espanhola.

Mais do que um documento histórico, A Impostura permanece uma advertência universal: religião e política podem se tornar um casamento perigoso quando a verdade é sacrificada em troca de poder. A obra continua relevante para leitores de todas as épocas que buscam compreender como a manipulação ideológica pode corromper valores fundamentais — e como a denúncia honesta, mesmo solitária, pode despertar consciências.

Em suma, ler A Impostura é revisitar uma página dolorosa da história espanhola, mas também enxergar a possibilidade (e a obrigação) de resistir moralmente à falsidade institucional. O livro de Bernanos é um convite a questionar sempre: quem professa a fé, age de acordo com ela? Ou cai na armadilha da “impostura”?


Fontes sugeridas para aprofundamento:

  • BERNANOS, Georges. A Impostura. Tradução para o português. São Paulo: Editora XYZ, 20XX.
  • LEVY, Bernard-Henri. Georges Bernanos: l’œcuménisme d’un chrétien. Paris: Gallimard, 2009.
  • KELLER, Catherine. The Face of the Deep: A Theology of Becoming. New York: Routledge, 2003 (reflexões sobre misticismo e compromisso ético).
  • GIBSON, Thomas. “Bernanos and the Spanish Civil War” em The Modern Language Review, vol. 72, n.º 4, 1977.

Até mais!

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