Publicado em 1933, Caetés é o romance de estreia de Graciliano Ramos, um dos maiores nomes da literatura brasileira. Escrita entre 1925 e 1928, mas publicada apenas após o autor assumir a direção da Imprensa Oficial de Alagoas, a obra já revela elementos marcantes de seu estilo: a introspecção psicológica, o olhar crítico sobre as instituições e a secura da linguagem. Ao contrário das obras mais conhecidas do autor — como Vidas Secas ou São Bernardo, que mergulham no universo do sertão nordestino — Caetés se passa em uma cidade do interior e tem como pano de fundo o cotidiano de uma classe média provinciana, pretensiosa e mesquinha.

Apesar de não ter a mesma força social de seus livros posteriores, Caetés é um importante marco do início da carreira de Graciliano Ramos e oferece um estudo agudo sobre a mediocridade humana, o narcisismo intelectual e o autoengano. Através do personagem principal, o narrador João Valério, o autor constrói um romance de crítica ácida e análise psicológica profunda, que denuncia as limitações morais e culturais da elite urbana brasileira.


Enredo e Estrutura

O romance é narrado em primeira pessoa por João Valério, um funcionário público de uma pequena cidade nordestina fictícia, próxima de Palmeira dos Índios. Ele é um sujeito introspectivo, frustrado e ambicioso, que busca escapar da mediocridade de sua vida através da literatura e da fantasia. Sonha em escrever um grande romance histórico sobre os índios caetés, tribo que habitou a região e teria, segundo a tradição, comido o bispo Dom Pero Fernandes Sardinha — episódio que João pretende transformar em símbolo da selvageria original brasileira.

Enquanto acalenta esse projeto literário, João Valério se envolve emocionalmente com Luísa, esposa do seu chefe, o comerciante Adrião. Esse envolvimento, no entanto, é em grande parte platônico, alimentado mais pela vaidade e pela imaginação do que por um desejo verdadeiro. Quando Adrião morre repentinamente, João acredita que terá finalmente a chance de conquistar Luísa, mas é confrontado com sua própria covardia e com a realidade que desmente suas fantasias.

Ao final do romance, João não termina seu livro sobre os caetés, tampouco conquista Luísa. Sua vida retorna ao ponto de partida, marcada pela estagnação, pelo autoengano e pela consciência amarga de sua mediocridade.


Personagens Principais

  • João Valério – narrador e protagonista. É um funcionário público vaidoso, ressentido, intelectualmente pretensioso e emocionalmente reprimido. Representa a figura do intelectual provinciano frustrado.
  • Luísa – esposa de Adrião, objeto de desejo de João Valério. Representa a mulher idealizada, projetada pelo olhar fantasioso do narrador.
  • Adrião – comerciante respeitado e chefe de João. Morre subitamente, o que dá início às fantasias de João sobre um possível envolvimento com Luísa.
  • Amigos de João Valério – figuras menores, mas que ajudam a compor o ambiente provinciano, como Castro, Alfredo e outros membros do “clube literário” local, marcados pela mediocridade e pelas disputas fúteis.

Temas Centrais

A mediocridade da vida provinciana

Um dos alvos principais de Graciliano Ramos em Caetés é o tédio e a mediocridade do cotidiano da classe média provinciana. A cidade em que se passa a história é marcada pela rotina burocrática, pelas conversas fúteis e pelas aparências sociais. Ninguém ali é realmente culto ou inovador — todos fingem interesse por literatura, política ou ciência, mas na prática são movidos por vaidade e conveniência.

O clube literário, do qual João Valério faz parte, é um bom exemplo: criado para debates intelectuais, rapidamente se dissolve em intrigas e disputas mesquinhas. Graciliano denuncia o vazio moral e cultural desse meio urbano, que reproduz valores europeus sem compreensão crítica e tenta encobrir sua pobreza intelectual com verniz.

O autoengano e a vaidade intelectual

João Valério é uma figura profundamente contraditória: deseja se distinguir como pensador e escritor, mas carece de disciplina, coragem e originalidade. Alimenta um projeto literário grandioso sobre os caetés, mas nunca escreve mais do que esboços. Idealiza Luísa, mas é incapaz de qualquer gesto concreto para conquistá-la.

Sua maior característica é o autoengano: acredita ser superior aos demais, mas é movido por ressentimento e covardia. Graciliano faz dele um símbolo do intelectual brasileiro pequeno-burguês — aquele que lê alguns livros, cita autores estrangeiros, mas que, na prática, é incapaz de ação verdadeira ou pensamento autêntico.

A crítica à hipocrisia social

A sociedade retratada em Caetés vive de convenções, aparências e julgamentos morais superficiais. As relações são marcadas por fofocas, moralismo e falsidade. João Valério, ao tentar se inserir nesse meio e ao mesmo tempo superá-lo, termina por se tornar cúmplice das mesmas contradições que critica.

A crítica de Graciliano Ramos à sociedade é sutil, mas impiedosa: todos vivem segundo códigos de aparência e vaidade, seja no comércio, na política local ou nos salões literários. A hipocrisia é a cola que mantém a ordem social — uma ordem que sufoca qualquer tentativa de autenticidade.


Estilo e Linguagem

Em Caetés, já estão presentes as marcas do estilo seco, direto e econômico que caracterizariam toda a obra de Graciliano Ramos. A linguagem é enxuta, sem adjetivos desnecessários, e a narrativa tem um ritmo introspectivo, muitas vezes interrompido por reflexões do narrador.

A primeira pessoa permite uma análise psicológica refinada de João Valério, revelando suas hesitações, suas fantasias e suas contradições. Graciliano evita o melodrama e opta por uma ironia sutil, que muitas vezes escapa à percepção do próprio narrador, mas que o leitor atento percebe com nitidez.

Apesar de ser um romance de estreia, Caetés demonstra já um domínio notável da forma narrativa, especialmente na construção de personagens complexos e na crítica social indireta, sem panfletarismo.


Relevância e Crítica

Na época de sua publicação, Caetés foi recebido com relativo interesse, mas não causou grande impacto imediato. Hoje, é considerado uma peça importante da trajetória de Graciliano Ramos, pois antecipa muitos dos temas que seriam aprofundados em São Bernardo (1934) e Angústia (1936).

Se nesses romances posteriores Graciliano mergulha na opressão social, na loucura e na degradação psicológica, em Caetés ele ensaia esses temas através da figura do homem comum, paralisado entre o desejo de ascensão e a consciência de sua pequenez.

A crítica ao nacionalismo de fachada, à pretensão cultural da classe média e ao vazio das instituições (como a imprensa, o funcionalismo público, os clubes literários) já está claramente delineada, embora com menos intensidade do que em seus livros seguintes.


Conclusão

Caetés é um romance de maturação. Embora não tenha a mesma potência simbólica de Vidas Secas ou o vigor narrativo de São Bernardo, oferece uma leitura rica e penetrante da alma humana em estado de frustração. João Valério é um personagem inesquecível justamente por sua banalidade: não é herói nem vilão, mas um homem comum, cheio de sonhos pequenos e vaidades inofensivas, que se esfacelam diante da realidade.

A obra marca o início promissor de uma das carreiras mais importantes da literatura brasileira. Ao optar por retratar a pequenez da vida urbana em vez dos grandes dramas do sertão, Graciliano Ramos mostra que a verdadeira tragédia pode estar na alma de qualquer homem — especialmente daqueles que não têm coragem de enfrentar a si mesmos.


Até mais!

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