Publicado originalmente em 1909, Recordações do Escrivão Isaías Caminha é o primeiro romance de Lima Barreto, um dos mais importantes autores do pré-modernismo brasileiro. Mais do que uma obra de estreia, o livro é um manifesto literário e social, carregado de crítica mordaz às estruturas de poder, ao racismo, ao jornalismo corrompido e à hipocrisia da sociedade carioca do início do século XX. De forma semiautobiográfica, o romance expõe as dificuldades enfrentadas por um jovem negro e inteligente que sonha com ascensão social, mas é repetidamente confrontado com os limites impostos pela cor da pele e pelas engrenagens perversas do sistema.
Enredo e Estrutura
Narrado em primeira pessoa por Isaías Caminha, o romance tem a forma de uma autobiografia fictícia. Caminha relata suas memórias desde a infância no interior do país, passando por sua vinda ao Rio de Janeiro em busca de um futuro melhor, até sua amarga constatação de que os ideais de mérito, honestidade e razão são esmagados por um sistema social injusto e corrupto.
Filho de uma ex-escrava com um padre branco, Isaías é criado com uma educação refinada e humanista, sonhando com uma carreira intelectual. No entanto, ao chegar à capital, encontra um ambiente hostil e excludente, dominado por jogos de influência, preconceito racial e falta de oportunidades reais para os menos favorecidos — especialmente os negros.
Depois de várias humilhações, Isaías consegue emprego em um grande jornal, onde espera poder atuar como pensador e formador de opinião. No entanto, rapidamente se desilude com o funcionamento da imprensa, percebendo que ali imperam o favoritismo, a bajulação política e a manipulação da verdade. A trajetória de Isaías torna-se, assim, o espelho das limitações impostas a quem ousa sonhar com justiça em um país marcado pela desigualdade e pelo racismo estrutural.
Personagens
O romance apresenta uma galeria de personagens emblemáticos que ajudam a construir o panorama crítico da obra:
- Isaías Caminha – protagonista e narrador, representa o jovem negro instruído que acredita na meritocracia, mas se depara com a realidade crua da exclusão.
- Padre (pai de Isaías) – figura distante, que o educa, mas nunca o reconhece publicamente, simbolizando a hipocrisia religiosa e o preconceito de classe e cor.
- Dr. Vilaça – protetor do protagonista na infância, representa o paternalismo branco e as boas intenções que não se traduzem em ação concreta.
- Castro – chefe do jornal, astuto e manipulador, símbolo do poder midiático que molda os fatos conforme os próprios interesses.
- Souto e outros jornalistas – colegas que refletem a bajulação, a mediocridade intelectual e o jogo de interesses do meio jornalístico.
Esses personagens contribuem para a desconstrução das instituições (igreja, imprensa, educação, justiça) que deveriam garantir o progresso e a igualdade, mas que, na prática, reforçam as desigualdades.
Temas Principais
Racismo estrutural
O tema central do romance é o racismo. Isaías, mesmo sendo culto, educado e esforçado, é sistematicamente desvalorizado por conta de sua cor. Lima Barreto denuncia a falácia da igualdade republicana e o mito da democracia racial. O racismo não aparece apenas em episódios explícitos de discriminação, mas sobretudo na naturalização da exclusão, nas oportunidades negadas, nos olhares de desconfiança e na ausência de reconhecimento.
Esse racismo silencioso, institucionalizado, é ainda mais cruel porque mina as esperanças daqueles que, como Isaías, acreditam que o esforço pessoal bastaria para vencer na vida. O livro, portanto, antecipa discussões que só ganhariam força na literatura e na sociologia brasileira décadas depois.
Crítica à imprensa
Outro eixo importante da obra é a crítica feroz ao jornalismo carioca da época. Lima Barreto, que também trabalhou em redações e sofreu com o preconceito, revela os bastidores nada nobres da profissão: jornalistas que escrevem sob encomenda, notícias manipuladas, bajulação a políticos e empresários, perseguições ideológicas.
Isaías entra para o jornal com o desejo de contribuir para o debate público, mas logo descobre que o jornalismo serve mais para manipular do que para informar. A imprensa, ao invés de defender a verdade e os interesses do povo, transforma-se num instrumento de poder a serviço de uma elite egoísta.
Ascensão social e frustração
Isaías Caminha é o símbolo do ideal republicano falido. Filho de ex-escrava, culto, disciplinado, acredita que a República permitirá sua ascensão por mérito. O romance mostra, no entanto, que a mobilidade social é uma ilusão para os negros e pobres: não basta estudar e se esforçar — as barreiras sociais, raciais e econômicas são quase intransponíveis.
Essa frustração se aprofunda à medida que o protagonista percebe que o mundo é regido por interesses, vaidades e preconceitos. No fim, Isaías Caminha abandona seus sonhos e se refugia num cargo público burocrático, derrotado, mas lúcido.
Hipocrisia das instituições
Lima Barreto denuncia as principais instituições brasileiras — igreja, imprensa, justiça, educação — como instrumentos de manutenção da desigualdade. Nenhuma delas é retratada como espaço de liberdade ou justiça. Todas reproduzem, de forma velada ou explícita, o preconceito e a exclusão.
A crítica não é panfletária, mas visceral e honesta. O autor escreve a partir de sua própria experiência de rejeição social, revelando como o Brasil do início do século XX, mesmo após a abolição da escravidão e a proclamação da República, continuava profundamente injusto.
Estilo e Linguagem
Lima Barreto adota um estilo direto, claro e fluente, com linguagem acessível, sem rebuscamento. A primeira pessoa confere autenticidade ao relato e aproxima o leitor da dor e das desilusões do protagonista. A narrativa, embora marcada por um tom amargo, conserva certa elegância crítica, equilibrando indignação com sensibilidade.
O autor emprega também elementos de ironia e sarcasmo, sobretudo ao descrever os bastidores do jornalismo e a hipocrisia das elites. Essa ironia é uma ferramenta importante para desmontar os discursos oficiais e mostrar a distância entre o ideal e o real.
Importância da Obra
Recordações do Escrivão Isaías Caminha é uma obra pioneira na literatura brasileira ao abordar o racismo institucional e o fracasso das promessas republicanas. Antecipando temas do modernismo e da literatura engajada do século XX, Lima Barreto inaugura uma nova perspectiva crítica da realidade nacional, centrada na figura do negro marginalizado.
A obra foi rejeitada por parte da crítica da época, que considerava o romance “pessimista” e “subversivo”. Mas com o tempo, foi reconhecida como um marco do pré-modernismo, abrindo caminho para escritores como Graciliano Ramos, Jorge Amado e Carolina Maria de Jesus, que também deram voz aos excluídos.
Além disso, o livro permanece atual: os temas tratados — racismo, desigualdade, manipulação da imprensa — continuam centrais na sociedade brasileira. Isaías Caminha é, até hoje, um espelho incômodo da realidade de muitos brasileiros.
Conclusão
Recordações do Escrivão Isaías Caminha é mais do que um romance de formação. É uma denúncia corajosa, escrita com dor e lucidez, de uma sociedade que promete justiça, mas entrega exclusão. Lima Barreto, com sua escrita acessível e sua visão crítica, revela as contradições do Brasil republicano e nos convida a refletir sobre as feridas ainda abertas.
Ao contar a história de um homem que acreditou na razão, no mérito e na justiça, mas foi derrotado pelo preconceito e pela mediocridade das instituições, o autor nos obriga a encarar um país onde o talento negro é sistematicamente silenciado. Uma obra imprescindível para quem quer compreender não só a literatura brasileira, mas também as raízes do nosso atraso social.
Até mais!
Tête-à-Tête

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